FORMAS VERBO-NOMINAIS LATINAS
RESSONÂNCIAS EM PORTUGUÊS
RESSONÂNCIAS EM PORTUGUÊS
Mariza Mencalha de Souza (UFRJ)
INTRODUÇÃO
O latim clássico possuía cinco formas nominais do verbo:
infinitivo, gerúndio, gerundivo, particípio e supino. Além de se comportarem
como verbo, elas podiam também desempenhar função substantiva e/ou adjetiva e
até adverbial, apresentando (com exceção do infinitivo, indeclinável) sistema
próprio de declinação e características inerentes ao verbo. No latim vulgar,
essa tipologia foi simplificada, tanto em seu aspecto verbal quanto nominal,
passando à estrutura morfossintática do português apenas três formas
verbo-nominais: infinitivo, gerúndio e particípio passado, a par de alguns
vestígios dos particípios presente e futuro e do gerundivo, incorporados à nossa
língua com sua feição original ou com novos valores. É desse assunto que iremos
tratar neste artigo.
FORMAS VERBO-NOMINAIS LATINAS
RESSONÂNCIAS EM PORTUGUÊS
RESSONÂNCIAS EM PORTUGUÊS
Infinitivo
O infinitivo latino era um substantivo verbal que recebia
esse nome por possuir traços que o identificavam simultaneamente com o verbo e
com o substantivo.
Como verbo, podia apresentar, além de um sujeito, a noção de
tempo e voz. Seu sujeito era ou o mesmo do verbo principal, ao qual ele se
ligava, na condição de objeto direto, ou o próprio acusativo da forma verbal
regente. No primeiro caso, construía-se o infinitivo com verbos do tipo
possum, debeo, queo, scio, disco, coepi,
incipio, soleo, assuesco, uolo, nolo, malo,
cupio, desidero, metuo, dubito, statuo,
gaudeo, postulo, studeo, laboro, festino,
propero, persevero, mitto, abstineo, etc. No
segundo, o infinitivo integrava uma oração subordinada substantiva infinitiva,
na qual dependia de verbos que tinham como complemento um acusativo que lhe
servia de sujeito, idêntico ou não ao da proposição principal. São exemplos das
duas construções: continuo meum cor coepit in
pectus emicare (Pl., Aul., 626-7) “imediatamente meu coração
começou a saltar em (meu) peito”, uolo facere “desejo fazer”, nunc
domum properare propero (Pl., Aul., 181)
“agora me apresso em voltar correndo para casa”; bona publicari iubet (Cíc.,
Cat., IV, 8) “ordena que os bens sejam confiscados”, cupio me esse
clementem (Cíc., Cat., I, 4) “desejo ser eu clemente”.
Ambas as construções latinas referidas acima passaram para o
português, ocorrendo o acusativo com infinitivo, em nossa língua, depois dos
verbos sensitivos “ver”, “ouvir”, “sentir” e causativos “fazer”, “mandar”,
“deixar”, com os quais o infinitivo não forma locução verbal. Vejamos alguns
exemplos nas obras de Machado de Assis: “vi assomar, à distância, uma mulher
esplêndida” (Brás Cubas, L), “Virgília deixou-se estar de pé” (idem,
VI), “o cocheiro fez parar o cavalo” (Quincas Borba, LXXXVI), “fez-me
aprender em casa primeiras letras, latim e doutrina” (Dom Casmurro, XI).
A estrutura latina do infinitivo desempenhando a função de
complemento direto de verbos de possibilidade, obrigação, conhecimento, vontade,
temor, etc., passou ao português, mas a tendência entre nossos gramáticos é ver
aí um caso de locução verbal, em que o infinitivo é considerado verbo principal
e não objeto direto do verbo auxiliar, tido, em latim, como regente. Ex.: “não
posso sair amanhã”, “devo partir hoje”, “ele não sabe estudar sozinho”, “quero
viajar”, “desejo sair”, “temo sair à noite”.
Havia, além dos já comentados, outros contextos em que o
infinitivo podia ter um sujeito. Isso ocorria nas situações em que ele era usado
com valor histórico, jussivo e exclamativo, para os quais colhemos, nessa ordem,
os seguintes exemplos: tum mater orare, hortari, iubere, quoquo
modo fugerem (Plín., Ep., VI, 20, 12) “então (minha) mãe
pedia, exortava, mandava-me que eu fugisse de qualquer modo”, tu socios
adhibere sacris (Val. Fl.) “reúne tu os companheiros para os
sacrifícios”, mene incepto desistere uictam! (Verg., En.,
I, 37) “eu desistir vencida do começado!”.
Todos os infinitivos citados no parágrafo anterior foram
preservados na frase portuguesa, inclusive acompanhados, como no latim, de
sujeito. O jussivo ocorre principalmente em ordens militares: “apontar, atirar,
fogo!”, “formar! - ordenou o comandante”; o histórico, em narrativas: “o pai nos
cabarés, gastando com raparigas. A mãe a fenecer em casa, a ouvir e a obedecer”
(Jorge Amado, apud Cunha & Cintra, 1997:474); e o exclamativo, nas exclamações:
“eu trair!” (Garret, Catão, 17), “ela aturar crianças!” (Castilho, As
sabichonas, 33).
Ainda como verbo, possuía o infinitivo as categorias de tempo
e voz, sendo, nesse particular, dividido em três modalidades: presente, perfeito
e futuro, empregados com sentido ativo ou passivo.
Dos tempos aqui aludidos, apenas o infinitivo presente ativo,
com final -āre,-ēre,
-ĕre e -īre,
passou para o português, depois de sofrer, no latim vulgar, a apócope do -e: amāre>amar,
debēre>dever, venděre>vender,
partīre>partir.
Entretanto, das quatro conjugações latinas, permaneceram em nossa língua somente
três, visto que a segunda se fundiu com a terceira (facěre>facēre>fazer)
desde o latim vulgar, sem contar os casos de verbos que mudaram de conjugação: fugěre>fugire>fugir,
torrēre>*torrare>torrar.
Como substantivo, podia o infinitivo desempenhar, dentre
outras funções, o papel de sujeito, objeto direto e predicativo, casos em que
equivalia a um nominativo ou acusativo. E mais: era possível ser construído, à
semelhança do substantivo, com adjetivos determinativos e qualificativos, na
qualidade de núcleo do sujeito ou do predicado. Tais empregos do infinitivo
podem ser observados nos seguintes trechos: uiuere est cogitare (Cíc.,
Tusc., 5, 111) “viver é pensar”, hic uereri perdidit (Pl.,
Ba., 158) “ele perdeu o respeito”, meque hoc ipsum nihil agere
delectat (Cíc., De or., 2, 24) “e este próprio fazer nada
me deleita”, meum intellegere nulla pecunia uendo (Petr.,
Sat., 52, 3) “não vendo meu saber por nenhum dinheiro”.
O valor nominal do infinitivo, na condição de sujeito, é
ainda freqüente nas construções em que ele vem subordinado a verbos impessoais e
expressões impessoais: oratorem irasci minime decet (Cíc.,
Tusc., 4, 54) “de modo algum, convém ao orador irar-se”, mihi
necesse est ire (Pl., Amph., 501) “para mim, é necessário
partir”. Esse uso do infinitivo equivalendo a um substantivo fica evidente se
substituirmos, nas duas frases latinas, as formas irasci e ire
pelos seus nomes correspondentes, ira e itus, e lhes dermos esta
outra tradução: “de modo algum, convém ao orador a ira”, “para mim, é necessária
a partida”.
Todos esses usos do infinitivo latino, com valor de
substantivo, foram herdados pela língua portuguesa. Dão-nos testemunho desse
fato frases como “comer é bom”, “viver é lutar”, “não ignoro o saber dos
filósofos”, “meu pesar é grande”, “o próprio sofrer o incomoda”, “quero levar
aos alunos meu saber”, “convém estudar”, “é necessário partir”.
O infinitivo podia igualmente ser empregado para exprimir
finalidade. Esse uso era comum com verbos de movimento (īre,
mittĕre, etc.) e com as expressões dāre biběre ou ministrāre biběre.
Exs.: uenerat aurum petere (Pl., Ba., 631) “tinha vindo
para pedir (seu) ouro”, quae iussi ei dari bibere (Ter.,
And., 484) “aquilo que lhe ordenei que fosse dado para beber”.
Em português, a herança do infinitivo de finalidade sobrevive
também em locuções formadas com verbos de movimento ou fossilizadas, do tipo
“dar de” e “dar para”. São exemplos elucidativos: “Pedro veio estudar
português”, “a mãe deu de beber/comer/mamar à criança”, “deu-me o filho para
criar”. No primeiro exemplo, o valor de finalidade torna-se mais enfático se
acrescentarmos a preposição “para”, marcador sintático usado freqüentemente para
indicar fim: “Pedro veio para estudar português”.
Gerúndio
O gerúndio caracterizava-se morfologicamente pelo sufixo -nd-.
Era um substantivo verbal neutro, de sentido ativo, que apresentava, para as
quatro conjugações latinas, apenas as terminações de acusativo, ablativo, dativo
e genitivo singular, características dos nomes neutros da segunda declinação.
Segue abaixo sua declinação completa:
acus. laudandum, abl. laudando, dat. laudando, gen.
laudandi (1ª conj.)
acus. docendum, abl. docendo, dat. docendo, gen. docendi
(2ª conj.)
acus. regendum, abl. regendo, dat. regendo, gen. regendi
(3ª conj.)
acus. capiendum, abl. capiendo, dat. capiendo, gen.
capiendi (3ª conj.)
acus. audiendum, abl. audiendo, dat. audiendo, gen.
audiendi (4ª conj.)
Tinha, portanto, o gerúndio, desde sua origem, uma natureza
anfíbia: uma voltada para o nome, e outra, para o verbo, identificando-se, nesse
particular, com o infinitivo, que podia também, conforme esclarecido há pouco,
desempenhar o papel de verbo e de substantivo.
Contudo, como normalmente o infinitivo exercia as funções de
sujeito, objeto direto, predicativo do sujeito e do objeto direto, próprias do
nominativo e do acusativo, as demais que lhe faltavam, reservadas naturalmente
aos outros casos latinos, foram preenchidas, graças a essa identidade, pelo
gerúndio ou pelo gerundivo e supino.
Além de suprir as lacunas deixadas pelo infinitivo, o
gerúndio servia também para expressar finalidade, caso em que vinha no
acusativo, precedido da preposição ad: uenit ad legendum
“veio para ler”, ou no genitivo, acompanhado dos substantivos causa ou
gratia: conuenerunt ludendi causa/gratia “reuniram-se
para jogar”. Acrescente-se que podia ainda funcionar como adjunto adverbial de
modo ou meio, quando, então, assumia a forma de ablativo sem preposição: Cato
nihil largiundo gloriam adeptus est (Sal., Coniur.
Cat., LIV) “Catão alcançou a glória nada deixando impune”, discitur
legendo et scribendo “aprende-se lendo e escrevendo”.
A propósito, do antigo gerúndio latino, a única forma
preservada em português foi a do ablativo sem preposição. Porém, cumpre lembrar
que não ficou o gerúndio português, em sua feição latina, restrito às antigas
circunstâncias de modo e de meio, visto que passou a exprimir outras funções
adverbiais não expressas pelo gerúndio latino em ablativo. Muito mais amplo que
sua matriz latina, o gerúndio português pode expressar, dependendo do contexto,
idéia de causa, concessão, condição, conseqüência, finalidade e tempo, sem
contar os outros valores que absorveu do particípio presente latino. Essa
riqueza do nosso gerúndio, exprimindo as novas e as primitivas circunstâncias de
sua antiga forma latina, é atestada nas seguintes passagens: “Custódio
interrompeu-o, batendo uma palmada no joelho” (M. de Assis, “O empréstimo”, in:
Papéis avulsos), “passava os dias no quarto, chorando” (M. de Assis,
Mem. de Aires, 10/2/1888), “temendo não vencer a
resistência da moça, dava-me por incapaz de amar” (idem, 25/1/1888),
“minha mulher, embora querendo simular descontentamento, não pôde deixar de
sorrir” (C. Drummond de Andrade, Contos de aprendiz, 17),
“não indo Aguiar, quem há de cuidar dele?” (M. de Assis, idem,
26/5/1889), “os ventos brandamente respiravam, das naus as velas côncavas
inchando” (Camões, Lus., I, 19), “Rita escreveu-me pedindo informações de
um leiloeiro” (M. de Assis, idem, 18/5/1888), “falando ou calando, tinha
intervalos de melancolia” (M. de Assis, idem, 22/5/1888).
Gerundivo
O gerundivo, marcado do mesmo modo pelo sufixo -nd-,
era, ao contrário do gerúndio, um adjetivo verbal, de valor passivo, terminado
em -us, -a, -um. Declinava-se, portanto, como qualquer
adjetivo de primeira classe, em todos os casos do singular e plural, concordando
sempre em gênero e número com seu complemento, que, por sua vez, harmonizava-se
com ele em caso.
Conhecido ainda como particípio futuro passivo, podia o
gerundivo concorrer com o gerúndio, exprimindo também as circunstâncias de meio
e de finalidade. Exprimia meio, vindo também, como o gerúndio, no ablativo sem
preposição, e finalidade, pondo-se no acusativo, precedido de ad mais
complemento, ou, no genitivo, mais causa/gratia. Temos exemplos
desses dois usos nas frases latinas omnis loquendi elegantia
augetur legendis oratoribus et poetis (Cíc., De
or., 3, 39) “eleva-se todo o brilho da palavra lendo-se os oradores e os
poetas”; uenit ad urbem condendam “veio para fundar a
cidade”, auxilii petendi causa profectus est (Cés.,
B. G., 6, 12) “partiu para pedir auxílio”.
Além de partilhar com o gerúndio algumas funções e empregos,
o que ocorria, sobretudo, quando servia de complemento a adjetivos, substantivos
e verbos, o gerundivo tinha um importante papel na sintaxe latina: o de
substituir o gerúndio, quando este deveria vir no dativo, acusativo ou ablativo
regido de preposição e acompanhado de objeto direto. Se, contudo, o gerúndio
viesse no genitivo ou no ablativo sem preposição e com complemento em acusativo,
podia ou não ser substituído pelo gerundivo, uma vez que, em tal situação, salvo
alguns casos isolados, nos quais exigia-se o emprego do gerúndio, era admissível
o uso de uma ou de outra forma, indiferentemente. Nos casos em que era
intransitivo, transitivo indireto ou transitivo sem complemento expresso, o
verbo assumia geralmente a forma de gerúndio e, preferencialmente, a de
gerundivo, se era transitivo direto com complemento expresso. Por fugir aos
objetivos deste artigo, dispensamo-nos de apresentar aqui exemplos com a
passagem ou não da construção gerundial ativa à passiva.
À semelhança do gerúndio, tinha também o gerundivo o valor
primitivo de nomes de ação, mas ao longo da evolução da língua latina foi
adquirindo outros sentidos que o distanciaram do gerúndio. Indo além dos limites
da construção gerundial, dentro da qual podia ter funções e empregos sintáticos
idênticos aos do gerúndio e auxiliá-lo na declinação do infinitivo, passou o
gerundivo a expressar, em funções atributiva e predicativa, as noções de
atribuição, obrigação, possibilidade, finalidade, chegando, inclusive, a ser
usado com valor participial. Tais valores podem ser observados nos seguintes
exemplos: asperum et uix ferendum (Cíc.), “duro e difícil
de ser suportado”, magna dis immortalibus habenda est
gratia (Cíc., Cat., I, 11) “grande graça deve ser rendida aos
deuses”, procul uidenda est insula (Ov., Metam.,
XIV, 244) “pode-se ver a ilha de longe”, mihi litteras legendas
dedit (Cíc., Fam., 10,12) “deu-me cartas para serem lidas”, inter
labores aut iam exhaustos aut mox
exhauriendos (Lív., Praef., 21, 21, 8) “em meio a fadigas já suportadas
ou a serem suportadas brevemente”, urbes delendae “cidades que vão
(devem) ser destruídas”, uir metuendus de die supplicii
(Rhythm.) “homem que teme quanto ao dia de (seu) suplício”, in
generatione eorum qui noscendi sunt (Nicodem.) “na
geração daqueles que hão de conhecer...”.
O gerundivo não deixou em português nenhum traço de sua
antiga acepção verbal. Legou-nos apenas seu valor nominal, representado em nossa
língua por substantivos (oferenda, propaganda, agenda, etc.) e adjetivos
(nefando, venerando, moribundo, etc.). Coutinho (1969:276) menciona a criação em
português de formas terminadas em -ndo, com valor de substantivo verbal,
numa série de palavras cultas: “educando”, “graduando”, “doutorando”.
Particípio
O particípio latino era também uma forma ambivalente, que
participava a um só tempo da natureza do verbo e do adjetivo. Sua natureza
verbal residia no fato de poder, à semelhança do verbo, exprimir ações, possuir
tempos e vozes e admitir complementos, ao passo que, enquanto adjetivo, sofria
flexão de gênero, número, caso e grau. Este último fato ocorre nos dois
sintagmas nominais seguintes: amantissimi fratres (Cíc.) e
dessideratissima nomina (Plín.).
Suas formas empregadas para expressar tempo denominavam-se
particípios presente, passado e futuro. O particípio presente, de índole ativa,
mas admitindo eventualmente sentido passivo, caracterizava-se pelo sufixo -nt-
e comportava-se como um adjetivo de segunda classe uniforme, ou seja,
declinava-se como prudens, seguindo, portanto, a terceira declinação.
O particípio passado, cujas terminações eram, de um modo
geral, -tus, -ta, -tum, tinha, ao contrário do particípio
presente, basicamente, com exceção de alguns casos isolados, sentido passivo e
seguia o paradigma dos adjetivos de primeira classe, declinando-se os
finalizados em -tus e -tum, pela segunda, e os terminados em -ta,
pela primeira.
O particípio futuro, que passa a ter função participial
praticamente a partir do período pós-clássico, constituía, inicialmente, uma
conjugação perifrástica e possuía formas ativa e passiva, terminando a primeira,
em -urus, -ura, -urum, e a segunda, chamada gerundivo, em -ndus,
-nda, -ndum, seguindo, portanto, uma e outra, como o particípio
passado, os adjetivos de primeira classe.
Todas essas formas do particípio eram usadas com valor
atributivo ou predicativo, isto é, ora vinham determinando um substantivo, no
papel de adjunto adnominal, ora, mais comumente, complementando ou qualificando
um nome, em função predicativa, formulando-se, por isso, em nominativo ou
acusativo. Temos exemplos do primeiro caso em: aqua fervens “água
fervente”, amicus exoptatus “amigo desejado”, opinio uenturi
boni (Cíc.) “a esperança do bem futuro” e, do segundo, em: miles
currens est (Verg.) “o soldado é corredor”, uidi iuuenem
maerentem (Tib., El., I, 4, 33-34) “vi um jovem se lamentando”, pons
prope effectus nuntiabatur (Lív.) “anunciava-se que a ponte
(estava) quase pronta”, uidi saltum obsaeptum (Pl.) “vi o bosque
cercado”, cum apes iam euolaturae sunt aut
etiam inceperunt... (Varr., R. Rust., 3, 16, 30)
“quando as abelhas estão para se reproduzir ou até já o começaram”, si
perituraeque addere Troiae teque tuosque
iuuat (Verg., En., II, 660-1) “se te agrada te juntares e aos teus à
Tróia que há de morrer”.
Em função predicativa, o particípio futuro fazia também a vez
de um adjunto adverbial de finalidade: multi accurrere filium
arguituri (Sal.) “muitos corriam para atacar o filho”.
Aliás, estas construções do particípio passado, tanto em sua
função atributiva quanto predicativa, foram legadas ao português. As do último
tipo, deixando suas marcas em frases como “diz-se que o problema está
resolvido”, “vi um objeto caído no chão”, “não quero vê-lo solto”, e as do
primeiro, refletindo-se em giros como “água purificada”, “alimento estragado”,
“problema resolvido”. É preciso esclarecer, no entanto, que, em português, o
particípio não exerce o papel de oração subordinada completiva, como ocorria no
latim, quando complementava verbos idênticos aos de nossos exemplos ou de
natureza diversa.
O particípio passado era ainda empregado em latim, juntamente
com o auxiliar esse conjugado (ou não, no caso do infinitivo perfeito
passivo), para formar também a voz passiva dos verbos de ação acabada, que
compreendiam os seguintes tempos e modos: perfeito, mais-que perfeito e futuro
perfeito do indicativo; perfeito e mais-que perfeito do subjuntivo e infinitivo
perfeito.
Foi mantido na língua portuguesa, tanto na conjugação passiva
quanto na formação dos tempos compostos da ativa, com os auxiliares “ter” ou
“haver”. Desse modo, temos, por exemplo, em português, para as terceiras
pessoas: “é amado(a)/são amados(as)”, “foi amado(a)/foram amados(as)”, “tenha
sido amado(a)/tenham sido amados(as)”, “tivesse amado/tivessem amado”, “havia
amado/haviam amado”, correspondendo ao latim clássico: amatur/amantur,
amatus(a) est/amati(ae) sunt,
amatus(a) sit/amati(ae) sint,
amauisset/ amauissent, amauerat/amauerant.
Estabeleceu-se, no entanto, como se percebe, uma diferença
entre a formação da passiva em latim e em português: enquanto naquele, a passiva
analítica restringia-se aos tempos do perfectum, neste, desde o latim
vulgar, estendeu-se também aos tempos de ação inacabada (infectum),
passando as noções de tempo e aspecto concluso/inconcluso a serem indicadas
unicamente por uma construção analítica e a centralizar-se, sobretudo, no
auxiliar “ser”.
A formação da passiva dos tempos compostos em português, com
dois particípios do tipo “Pedro tem sido elogiado por todos” e “a lição havia
sido estudada pelo aluno”, não é uma herança da sintaxe clássica latina, e sim
resultado da conversão para a passiva de perífrases ativas do tipo “todos têm
elogiado Pedro”, “o aluno havia estudado a lição”, já encontradas no latim
arcaico e clássico, e predominantes no latim vulgar.
O particípio presente, usado com acepção atributiva e
predicativa, também passou para o português, o que se observa em sintagmas como:
“água corrente”, “luz ofuscante”; “esta situação é preocupante”, “achei Maria
intolerante”, etc. Todavia, nas construções desse tipo, preservou apenas seu
valor adjetivo, tendo perdido sua função verbal, que acumulava com a adjetiva em
sua forma latina. Para Coutinho (1969:275), o particípio presente tinha força
verbal somente no português arcaico. O filólogo comprova o fato citando dois
exemplos: “temente o dia de mia morte” e “lançantes bom cheiro”.
Aliás, em português, esse duplo papel do antigo particípio
presente foi assumido pelo gerúndio, que acumula também, em emprego atributivo
ou predicativo, numa única forma, os valores de adjetivo e verbo percebidos, a
nosso ver, mais nitidamente na oração adjetiva desenvolvida. Assim, em frases
como, “água fervendo” e “vi a flautista tocando”, as funções verbal e adjetiva
dos dois gerúndios dão-nos a impressão de acentuar-se quando substituímos suas
formas por orações equivalentes desenvolvidas: “que ferve”, “que tocava”.
Os vestígios deixados pelo particípio futuro ativo, com
função atributiva, ou melhor, de adjunto adnominal, sobrevivem, em nosso idioma,
em alguns torneios do tipo “dias vindouros”, “ação futura”. Contudo, parecem
sofrer alguma restrição de uso em função predicativa.
Os particípios latinos sofreram também um processo de
substantivação, processo este presente em formas como amantes,
praesentes, legatus, docti, uicti, facta,
dicta, gesta, credituri, morituri. A herança de tais
particípios, com valor substantivo, é visível em diversas palavras portuguesas,
dentre as quais, podem ser citadas: “os sobreviventes”, “o gerente”, “o
ouvinte”, “o legado”, “os feitos”, “os ditos”, “o futuro”, “o nascituro”, “o
morituro”. Lembremos, a propósito, os substantivos “viventes” e “legado”, o
primeiro, presente no título de um dos livros de Graciliano Ramos, Viventes
das Alagoas, e o segundo, na célebre frase com que Machado de
Assis encerra o seu Brás Cubas: “não tive filhos, não transmiti a
nenhuma criatura o legado da nossa miséria”.
Além desses empregos, os particípios eram usados ainda com
valor de oração subordinada adjetiva relativa ou de oração subordinada adverbial
exprimindo modo, causa, concessão, condição, finalidade e tempo. Temos exemplos
da primeira situação nas frases latinas lex est recta
ratio imperans honesta, prohibens contraria (Cíc., Phil.,
11, 12, 28) “a lei é a reta razão que determina o que é correto e proíbe o que é
incorreto”, Pisistratus qui primus Homeri libros
confusos antea sic disposuisse dicitur (Cíc., De
or., 3, 137) “Pisístrato, que dizem então ter sido o primeiro a organizar
os poemas de Homero, (os quais estavam) antes confusos”; e, da segunda, em
infit ibi postulare plorans, eiulans, ut sibi
liceret miluum uadarier (Pl., Aul., 318-19) “então,
chorando, lamentando, começou a pedir (ao pretor) que lhe fosse permitido citar
o milhafre em juízo”, ruinam metuens aquila ramis
desidet (Fed., Fab., II, 4, 21-22) “a águia, temendo a queda,
mantém-se empoleirada nos ramos”, risus interdum ita
repente erumpit, ut eum cupientes tenere
nequeamus (Cíc., De or., 2, 58, 235) “às vezes, o riso irrompe
tão de repente, que ainda que desejando, não conseguimos contê-lo”, damnatum
poenam sequi oportebat (Cés., B. G., 1, 4, 1)
“caso fosse condenado, convinha cumprir a pena”, rediit belli
casum de integro tentaturus (Lív., 42, 62, 15) “voltou para
enfrentar novamente os acasos da guerra”, humana effodiens ossa
thesaurum canis inuenit (Fed., Fab., I, 27, 3-4) “um
cão, ao desenterrar uma ossada humana, achou um tesouro”.
Os particípios presente e passado latinos, com papel de
oração subordinada adjetiva, não sobreviveram em português, porém figuram em
determinadas construções, lembrando essa antiga função. Isso se verifica em
frases do tipo “ela é uma criança carente de afeto”, “este é o tema referente à
minha palestra”, “ela recuperou seus documentos perdidos”, “as histórias
escritas por Machado de Assis fascinam os leitores”, nas quais as formas
“carente”, “referente”, “perdidos” e “escritas” poderiam ser substituídas por
uma oração subordinada adjetiva, sem mudar de sentido.
Com acepção adverbial, somente o particípio passado se
manteve em português: “maltratado pelo irmão, começou a chorar”, “embora pintado
por um famoso artista, o quadro não me agradou”, “feito com amor e dedicação,
tudo agrada”, “depois de expulso da casa paterna, nunca mais voltou”. Já o
particípio presente foi, nesse caso, substituído, quase que sempre, pelo
gerúndio, infinitivo ou por uma oração desenvolvida. Dão-nos testemunho desse
fato as sentenças “entrou em casa sorrindo/a sorrir”, “temendo perder/por temer
perder/como temia perder o imóvel, pagou a dívida”, “mesmo ajudando/apesar de
ajudar/embora ajude os outros, não é ajudado”, “estudando/ao estudar/caso
estudes, passarás no concurso”, “telefonei-lhe solicitando/para solicitar que
comparecesse ao jantar”, “saindo/ao sair/quando saíres, fecha a porta”.
As circunstâncias de causa, concessão, condição e tempo
podiam ainda vir expressas pelos particípios presente e passado, numa outra
construção latina, conhecida como ablativo absoluto, que difere da oração
participial subordinada adverbial, pelo fato de não depender de nenhum termo da
proposição principal.
Semelhante estrutura, muito comum em latim, está presente nos
seguintes trechos colhidos da literatura latina: ut re confecta, omnes
curam et diligentiam remittunt (Cés., B. C.,
2, 13, 2) “porque (julgam) o caso terminado, todos deixam de lado cuidado e
zelo”, id (oppidum)... paucis defendentibus expugnare
non potuit (Cés., B. G., 2, 12, 2) “embora poucos
defendessem a cidade, não pôde subjugá-la”, maximas uirtutes
omnes iacere necesse est, uoluptate dominante (Cíc.,
Fi., 2, 117) “é inevitável que todas as grandes virtudes fiquem esquecidas,
se o prazer domina”, ipse triduo intermisso cum omnibus
copiis eos sequi coepit (Cés., B. G., I,
XXVI) “passados três dias, ele próprio começou a segui-los com todas as (suas)
tropas”.
Aqui também os particípios presente e passado tiveram destino
idêntico ao observado na construção precedente, isto é, apenas o particípio
passado sobreviveu nas construções de ablativo absoluto legadas ao português,
conservando os mesmos valores que tinha em latim. Causa: “fraudados os votos,
houve nova eleição”; concessão: “mesmo exauridas as forças, não se renderam”;
condição: “aceita a proposta, faremos negócio”; tempo: “começado o filme, a
platéia silenciou”.
O particípio presente, mais uma vez, teve seu lugar tomado
pelo gerúndio, infinitivo ou por uma oração desenvolvida. Bastam alguns exemplos
para que constatemos o fato. Vejamos: “prevalecendo/por prevalecer/como
prevaleceu o depoimento da vítima, o réu foi condenado”; “caindo/apesar de
cair/ainda que caia neve, sairei”; “saindo/se sair/caso saia o sol, irei à
praia”; “nascendo/ao nascer/quando nasceu o dia, ele partiu”.
Supino
O supino, com sufixo em -to ou -so, foi a única
forma verbo-nominal latina que se perdeu completamente em português. Auxiliava a
declinação do infinitivo e tinha apenas três casos, o acusativo, usado com
verbos de movimento para indicar finalidade, e o dativo-ablativo, cujo emprego
era comum com adjetivos do tipo facilis, iucundus, fas,
etc. Tanto sua forma de acusativo (ex.: pugnatum, doctum,
rectum, captum, auditum) quanto de ablativo (ex.: pugnatu,
doctu, rectu, captu, auditu) podiam ser substituídas
pelo gerúndio antecedido de ad. Ex.: miles uenit pugnatum/ad
pugnandum “o soldado veio para lutar”; puer difficilis
doctu/ad docendum “criança difícil de ser educada”.
CONCLUSÃO
Concluímos que, do particípio presente e futuro, só passaram
para o português suas funções substantiva e adjetiva, ao passo que, do
particípio passado, permaneceram seus três valores: adjetivo, verbal e
substantivo, o que comprova ser essa forma, em nossa língua, a mais
conservadora, uma vez que manteve quase que todos os traços de sua matriz
latina. Apesar de haver se conservado no português com uma única tipologia, o
infinitivo também preservou grande parte dos valores da forma latina de que se
originou, passando a exercer um importante papel na morfossintaxe portuguesa,
admitindo inclusive flexão, o que o distingue do seu congênere no latim e nas
demais línguas românicas. O gerúndio, não obstante sua origem única, adquiriu
também, na língua portuguesa, grande versatilidade, resultante não só dos novos
valores que passou a ter, mas também das funções que assumiu do antigo
particípio presente latino. Do supino, já vimos não existir nenhum vestígio em
nosso idioma, e do gerundivo, só restou seu valor nominal, tendo se perdido seu
valor verbal. Seja como for, cada forma verbo-nominal latina deixou suas marcas
no sistema morfossintático da língua portuguesa, servindo de ponto de partida
para inovações ou conservando, em grau maior ou menor, suas primitivas feições.
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14/02/2013, 20:34