Em síntese, e para encerrar este tópico, conclui-se
que a invenção do letramento, entre nós, se deu por caminhos diferentes
daqueles que explicam a invenção do termo em outros países, como a França e os
Estados Unidos. [...] no Brasil a discussão do letramento surge sempre
enraizada no conceito de alfabetização, o que tem levado, apesar da
diferenciação sempre proposta na produção acadêmica, a uma inadequada e
inconveniente fusão dos dois processos, com prevalência do conceito de
letramento, [...]” (p. 08).
Para Soares (2003, p. 09), a “excessiva
especificidade” do processo de alfabetização diz respeito “a autonomização das relações entre o sistema fonológico e o sistema
gráfico em relação às demais aprendizagens e comportamentos na área da leitura
e da escrita, ou seja, a exclusividade atribuída a apenas uma das facetas da
aprendizagem da língua escrita.”
“[...] o tradicional não se esgota no
passado, é fruto de um processo permanente que não termina nunca: estamos
construindo hoje o “tradicional” de amanhã, quando outros “novos” surgirão” (p.
10) [detalhes acrescidos no original].
“[...] a percepção que se começa a ter, de que, se as crianças estão
sendo, de certa forma, letradas na escola, não estão sendo alfabetizadas,
parece estar conduzindo à solução de um retorno à alfabetização como processo
autônomo, independente do letramento e anterior a ele” (p. 11) [detalhes
acrescidos no original].
Para Soares (2004, p. 12) em determinadas correntes teóricas, “o sistema
grafofônico (as relações fonema–grafema) não é objeto de ensino direto e
explícito, pois sua aprendizagem decorreria de forma natural da interação com a
língua escrita. É essa concepção e esse princípio que fundamentam a whole
language, nos Estados Unidos, e o chamado construtivismo, no Brasil”
[detalhes acrescidos no original].
Acreditar que um processo de ensino-aprendizagem possa ocorrer primeira
e/ou primordialmente de forma “incidental, implícita e assistemática” (SOARES,
2004, 14) traz complicações políticas que, se não passarem por um crivo
reflexivo, podem derivar em práticas de desleixo, em inconsistências e/ou em
dificuldades.
De acordo com Soares (2004, p. 16), embora designem processos
interdependentes, indissociáveis e simultâneos, são processos de natureza
fundamentalmente diferente, envolvendo conhecimentos, habilidades e
competências específicos, que implicam formas de aprendizagem diferenciadas e,
consequentemente [sic], procedimentos
diferenciados de ensino.
SOARES, Magda B. Letramento e
alfabetização: as muitas facetas. Revista Brasileira de Educação. 2004. p.
05-17.
................................
Além do letramento escolar, Terra (2013, p. 32) informa que existem “outros
tantos tipos de ‘letramentos’ (familiar, religioso, profissional etc.) que
surgem e se desenvolvem na socie- dade, portanto, à margem da escola, não
precisando por isso ser depreciados [...]”.
Scribner & Cole (apud Terra,
2013, p. 33) classificam letramentos como “um conjunto de práticas socialmente
organizadas que fazem uso de sistemas simbólicos e tecnológicos para
produzi-las e disseminá-las.”
“Na linha de raciocínio de Marcuschi, teríamos, portanto, dois domínios
linguísticos (fala e escrita) em que se encontraria localizado o conjunto de
variações de gêneros textuais, de modo que haveria gêneros de textos mais
propriamente orais (prototípicos), como por exemplo, a conversa cotidiana,
assim como gêneros de textos mais próprios da escrita (também prototí- picos),
tal como uma tese de doutorado. Entre os polos do contínuo (fala e escrita)
estaria distribuído um espectro de gêneros, obedecendo a uma gradação, que, por
sua vez, tomaria como base de organização o meio de distribuição (sonoro ou
gráfico) e a concepção discursiva (oral ou escrita) de acordo com uma maior ou
menor aproximação de uma ou de outra modalidade (gêneros de fala e gêneros de
escrita)” (p. 39).
“[...] com o desenvolvimento desenfreado de novas mídias e tecnologias,
os textos se transformam em entidades multimodais, em que diversas modalidades
de linguagem (fala, escrita, imagens – estáticas e em movimento – grafismos,
gestos e movimentos corporais) se integram e dialogam entre si, construindo
mutuamente os sentidos do texto e reconfigurando, consequentemente, as relações
entre linguagem oral e escrita [...]” (p. 41).
“Para esse autor [Vygotsky], os processos psicológicos básicos
(abstração, genera- lização, inferência) são universais e comuns para toda a
humanidade, no entanto, a organização funcional desses processos (processos
psicológicos superiores, na terminologia vygotskiana) sofre variações em
consonância com a natureza do sistema de signos disponível em diferentes épocas
his- tóricas e dos modos como sociedades específicas fazem usos desses recursos
mediacionais.” (p. 42).
“Essencialmente, o modelo ideológico [de letramento], partindo de
diferentes premissas que norteiam o modelo autônomo de letramento, defende que:
(i) o letramento é uma prática social e não simplesmente uma habilidade técnica
e neutra; (ii) os modos como os indivíduos abordam a escrita têm raízes em suas
próprias concepções de aprendizagem, identidade e existência pessoal; (iii)
todas as práticas de letramento(s) são aspectos não apenas da cultura mas
também das estruturas de poder numa sociedade” (p. 45).
Heath (apud TERRA, 2013, p.
46) define evento de letramento como “qualquer situação em que um portador
qualquer de escrita é parte integrante da natureza das interações entre os
participantes e de seus processos de interpretação”.
“[...] para compreender o letramento, é importante examinar eventos
particulares em que a leitura e a escrita são usadas” (p. 47).
Barton (apud TERRA, 2013, p. 48) define práticas de letramento como “modos
culturais gerais de usar a leitura e a escrita que as pessoas produzem num
evento de letramento”.
“Ainda que sujeito a diferentes interpretações, em sentido amplo, o
termo escolarização serve para designar uma prática formal e institucional de
ensino que, visando a uma educação integral do indivíduo, é realizada de
maneira contínua, de certo modo linear, cuja meta envolve alcançar um produto
final que é passível de ser avaliado/certificado (atesta ou nega a eficiência
do processo de escolarização) e reconhecido oficialmente. O mes- mo não
acontece com o letramento. Assumindo-se tal fenômeno como um conjunto de
práticas sociais – que implicam o desenvolvimento de capacidades de uso de
diversas práticas da escrita (em suas variadas formas) na socie- dade - claro
parece estar que o processo de sua constituição jamais chega a atingir o status
de um ‘produto final’, haja vista o caráter de multiplicidade e de
transformações constantes que configuram os usos sociais da escrita, na
contemporaneidade” (p. 50).
“Letrado é, portanto, o indivíduo que exerce efetivamente as práticas
sociais relacionadas à escrita, ou seja, participa de forma competente de
‘eventos de letramento’ nas di- versas esferas sociais da atividade humana e
não apenas aquele que faz um uso formal da escrita” (p. 50).
A escolarização enquanto uma prática sociocultural,
não determina mas contribui para atividades de letramento.
“Implícito parece estar, então, que o grande
desafio que se impõe ao ‘letramento escolar’ hoje é a formação de um aluno que
esteja preparado para o enfrentamento da utilização de novas e incipientes
práticas sociais da escrita impostas pelas complexas tecnologias das sociedades
contemporâneas que demandam letramentos múltiplos (e multimodais)” (p. 52).
“[...] o letramento é um fenômeno situado e
irremediavelmente inseparável das práticas sociais que lhe dão origem, cujos
modos de funcionamento moldam as formas pelas quais os sujeitos que nelas se
engajam constroem relações de identidade e de poder” (p. 53).
TERRA, Márcia Regina. Letramento
& letramentos: uma perspectiva sócio- cultural dos usos da escrita. D.E.L.T.A.,
29:1, 2013 (29-58).
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