terça-feira, 8 de fevereiro de 2011

Bakhtin - e ensino de língua materna

CONTRIBUIÇÕES DO CÍRCULO DE BAKHTIN AO ENSINO DA LÍNGUA MATERNA
Maria Bernadete F.de Oliveira
Universidade Federal do Rio Grande do Norte

RESUMO: Objetivamos neste trabalho discutir o conceito de linguagem formulado pelo círculo de Bakhtin, como referencial teórico que possibilitaria ao ensino da língua materna, através de atividades realizadas no cotidiano da sala de aula, assumir um compromisso com a formação do cidadão crítico e reflexivo, ultrapassando o professor, no exercício de sua prática docente, a noção do que “o texto é”, para uma outra que compreende o que “o texto diz e significa”.

PALAVRAS-CHAVE: dialogia, vozes sociais, ensino de língua materna.

ABSTRACT: This paper discusses the contribution of Bakhtin’s circle to language teaching and learning, as an approachal which comprehends language as a meaningful process, carrying social values, that allows teachers, in their daily activities in classroom, contribute to the formation of a critical citizen .

KEY-WORDS: dialogism, social voices, language teaching

Ao se discutir questões de ensino e aprendizagem, cada vez mais é ressaltada a responsabilidade da escola em sua contribuição para a construção da cidadania, implicando em introduzir o aluno no contexto de um debate que discuta valores e reflita sobre as manifestações de sua própria subjetividade e da construção de seus processos identitários. Esta temática é recorrente nas teorias pedagógicas, nos dizeres dos professores, nas introduções das propostas curriculares dos cursos de formação de professores (Kramer 1994; Geraldi 1998; Pimenta 1999,Oliveira 2001.b), e, remete para a discussão da formação do profissional de Letras e de quais saberes estes cursos disponibiizam ao futuro profissional, de forma a permiti-lo desempenhar tais tarefas, no cotidiano de sua sala de aula.
Sem dúvidas que deslocamentos, de ordens diversas, se fazem necessários, na formação destes profissionais, no sentido de possibilitar ao ensino de língua materna, a formação de leitores e produtores de textos posicionados socialmente, pelos e nos seus enunciados, tomando consciência de seu discurso em um processo que Fairclough denomina de “conscientização crítica da linguagem”.
De ordem teórica, o ponto de partida seria pensar a linguagem na perspectiva de uma prática social, na qual, o discurso, moldado pelas relações de poder e ideologias, apresenta-se como processos de significação, manifestação de pontos de vista, de subjetividades, provocando efeitos nas construções identitárias, nos sistemas de conhecimentos, crenças, os quais, nem sempre estão aparentes na estrutura organizacional do discurso (Fairclough, 1992), introduzindo-se a idéia da constitutividade do sujeito pela e na linguagem.
De ordem metodológica, a ampliação caminha na perspectiva de uma visão de realidade como descontínua, não linear, considerando o acontecimento, o evento, em sua
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singularidade e cotidianidade, como objeto de estudo, cabendo ao analista, compreendê-lo e interpretá-lo (Laville e Dionne, 1999; Schnittman, 1996).
Pensando assim, é que nos remetemos aos ensinamentos do “círculo de Bakhtin”, por serem aqueles estudiosos que concebem o estudo dos signos verbais inserido no universo dos bens simbólicos, no “mundo da cultura”, e, por fazerem parte de uma realidade, a qual constituem e que lhes constitui, apresentam-se “ensopados de valores” (Faraco,1996).
Em uma alusão aos movimentos do universo, Bakhtin(1991) nos diz que, na vida social, as forças centrífugas propagam a diversidade, a heterogeneidade das línguas, as quais se opõem às forças centrípetas, aquelas que tendem a instaurar uma forma de linguagem padronizada, enquadrando os enunciados concretos e seus processos de significações. Faz-nos ainda compreender a natureza dialógica do discurso, sua orientação para o outro - real ou virtual-, eco de outros discursos, com os quais mantém relações dialógicas, deles tomando formas, significações, por meio de processos de assimilação, reestruturação, em graus diversos (Bakhtin 1991, 1992). Uma concepção de linguagem, portanto, para além das relações que se estabelecem nos limites da língua, condensando a idéia básica de que todo fato de significação é resultado de um trabalho social, realizado por sujeitos ativos no processo de interação/troca/comunicação verbal, fazendo emergir signos portadores de valores sociais, definidos a partir do horizonte social de sua época e pelas formas das relações sociais nas quais se constroem.
A perspectiva de abordagem da linguagem, formulada pelo círculo de Bakhtin, resgata uma concepção de sujeito, que se constitui face ao outro, mas não se dilui no outro, negando o estudo do sujeito “... a título de coisa porque, como sujeito, não pode, permanecendo sujeito, ficar mudo: conseqüentemente o conhecimento que se tem dele só pode ser dialógico...” (Bakhtin, 1992: 403). Um sujeito que não se apresenta nem como reflexo nem como assujeitado e muito menos como origem absoluta da expressão, e sim, como o lugar de encontro dialógico do exterior e do interior, das relações inter e intrasubjetivas ( Voloshinov, 1979). Afirmam-se pois pontos para uma teoria da subjetividade, dependente do horizonte social, construída em relações intersubjetivas, embora nelas não se dissolva, uma teoria do sujeito no qual os mundos da razão e do inconsciente não se excluem, se atravessam.
Este deslocamento teórico acompanha-se de um outro, de ordem metodológica. Passa-se da oração, unidade de análise da ordem da língua, do sistema, do idêntico, para o enunciado, que é da ordem do acontecimento, do singular, do irreproduzível (Bakhtin, 1992). De natureza tão diferentes, embora ao mesmo tempo interligadas, estas duas unidades implicam, portanto, em escolhas metodológicas também diferenciadas.
A análise para o pólo da oração, orienta-se na busca daquilo que na língua é sistemático, organizado em estruturas e níveis, considera os elementos reproduzíveis, opera com categorias pré-definidas, e tem subsidiado sistematicamente o ensino da língua materna. O pólo do enunciado assenta-se em outras bases. Ultrapassa os elementos reproduzíveis da língua. Comporta o já-dito, as antecipações, as relações dialógicas inter e intra-enunciados, e, que ocorrem nas fronteiras de pelo menos dois sujeitos, duas consciências.
O estudo da linguagem, a partir da unidade “enunciado”, introduz uma noção de texto, como evento único, como acontecimento, uma resposta aos outros textos, que versam sobre o mesmo objeto do discurso, e, com os quais se relaciona, ao mesmo tempo, que está sempre a “espera” de uma resposta, orientando-se sempre para o outro. Cada texto pressupõe um sistema convencional, isto é uma língua, comporta elementos técnicos, como por exemplo, a ortografia, mas, exatamente, por ser único, irreproduzível, lugar dos
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sentidos, sua reprodução por um sujeito é sempre um acontecimento novo, um novo elo na cadeia histórica da comunicação verbal, do grande e inacabado diálogo. (Bakhtin, 1991, 1992)
Ao tomar-se o enunciado como unidade da comunicação verbal, a abordagem metodológica desloca-se de um olhar e de um debruçar-se sobre o texto, que se restinge a processos de identificação, reconhecimento, classificação dos elementos da ordem da língua, para um outro, que remete para operações de compreensão e interpretação. Compreender significa orientar-se para a consciência do outro e de seu universo, interpretar a consciência alheia, em todos os seus matizes, para além de uma percepção psico-física do signo, do reconhecimento do significado em língua, alcançando a compreensão dialógica e ativa, que implica em ações entre interlocutores, atravessada que é por juízos de valor.
Com este conjunto de pressupostos, os teóricos do círculo de Bakhtin vão propor o estudo da linguagem humana, enquanto uma atividade cognitiva, orientada para a ação comunicativa, através de sua manifestação nas diversas línguas, não mais concebida apenas como forma. E, ao tomar como foco de seus estudos o universo dos signos verbais, a orientação para o outro e o diálogo entre consciências estabelecem, como elementos indispensáveis aos estudos da linguagem, de um lado, as relações entre enunciado e realidade, de outro aquelas entre o enunciado, seu produtor e seus interlocutores.
Operar teoricamente, metodologicamente e didaticamente, com estes dois tipos de relações, implica em assumir outras categorias de análise, incorporando ao ensino e aprendizagem da língua materna, questões relacionadas ao sujeito do discurso, passando portanto pelas noções de valor, das vozes sociais e suas relações dialógicas. Ou seja, no dizer de Bakhtin (1992), estudar e compreender os aspectos e formas de relação dialógica entre enunciados, formatados em diversos gêneros discursivos, plenos de orientações apreciativas, juízos de valor, em síntese, elementos que, embora alheios ao sistema lingüístico, remetem para o próprio funcionamento do enunciado, no qual se fazem ressoar vozes, algumas vezes longínquas e até imperceptíveis, entre as quais distribuem-se os sentidos. Vozes compreendidas como manifestação de consciências que dialogam, debatem, concordam, discordam, silenciam a voz do outro ou a si próprio, expressando valores, plurais ou não, personificação de diferentes sujeitos, de diferentes visões de mundo. Vozes que estabelecem relações dialógicas, relações de ordem extralingüísticas, que, não podem ser separadas do campo do discurso, ou seja, da língua enquanto fenômeno integral concreto, mas que são irredutíveis às relações lógicas ou àquelas de natureza semântico-pragmáticas. Relações possíveis entre enunciados integrais e entre qualquer parte do enunciado, inclusive aquele constituído por uma palavra isolada, desde que nele ouçamos a voz do outro( Bakhtin, 1981). Relações, portanto, que pressupõem sujeitos, ainda que seja difícil reconhecê-los, face à sua não concretude imediata, e que vão desde aquelas mais simples, como a polêmica, a paródia, até aquelas que vão permitir e possibilitar ultrapassar, ao ensino da língua, o nível da organização do texto, penetrando no campo das significações, dos valores, da subjetividade, enfim, da linguagem concebida como uma prática discursiva. São as relações dialógicas mais complexas, aquelas nas quais a estratificação de um sentido se sobrepõe a outro, podendo dominá-lo, ou com ele concordar, que constituem o espaço privilegiado de existência e observação das vozes sociais (Bakhtin, 1981, 1990).
Estas colocações sobre as vozes e as relações dialógicas levam-nos a entender que o enunciado pressupõe sempre sujeitos do dizer, cujas vozes expressam valores e estão
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sempre em algum tipo de relações dialógicas. Por outro lado, é, por ser singular, que o enunciado pode refletir a individualidade de quem fala ou escreve, estando sempre a espera de uma resposta e não de uma duplicação de seu pensamento no pensamento do outro.
Após estas considerações, tentaremos exemplificar como podem ser analisados textos produzidos por alunos, do segundo grau, aos quais foi solicitado escrever sobre um tema polêmico, “a pena de morte”.
Os textos 1 e 2 apresentam posições de sujeitos “contra” a pena de morte, enquanto que no texto 3, o posicionamento é “ a favor”. Um olhar, ainda que rápido sobre os três textos, faz perceber diferenças entre as relações dialógicas que se travam, isto é, os textos dialogam com as vozes alheias que circulam no conjunto da sociedade, com “ já-ditos” pertencentes a diferentes domínios, assumindo suas posições de sujeito, flutuantes, comprometendo-se com valores, de cada um desses domínios.
O texto 1, por exemplo, nega os discursos que defendem a pena de morte, cuja orientação valorativa ancora-se predominantemente em julgamento emocionais. Trata o tema de uma forma generalizada, e a posições de sujeito predominante remete para “já-ditos” de um discurso critico das instituições sociais, no caso específico, a justiça e os presídios, afirmando que “... a justiça não é perfeita, e muito menos os presídios...”. Em seguida, esta posição de sujeito flutua e o enunciado é permeado por vozes provenientes do domínio do discurso religioso, quando considera que “...um homem não tem direito de tirar a vida de ninguém...”. Enunciado que faz ressoar outros já formulados, cuja interpretação é possível pela sua já incorporação à memória discursiva social.
No texto dois, à semelhança do anterior, o sujeito do dizer posiciona-se contra aqueles que por razões emocionais são favoráveis à adoção da pena de morte, tomando como exemplo a morte recente (na época) da atriz Daniela Perez. Mas, a continuidade de seu diálogo, diferentemente do anterior, vai concordar com as vozes, ainda que longínquas e anônimas (Bakhtin, 1992), que tratam das desigualdades sociais no país, ao afirmar-se contrário à pena de morte, pelo fato de que “...a justiça , principalmente no Brasil não impõe a sua autoridade aos ricos...”, e em seguida assume a máxima, desta vez, explícita, do discurso religioso de que “...ninguém tem o direito de tirar a vida do outro, só DEUS...”
Já o texto três, apresenta uma posição de sujeito “a favor” da pena de morte, baseando-se em argumentos de ordem emocional. O sujeito do dizer assume sua posição de sujeito, identificando-se com aquelas vozes que manifestam seu horror ao crime e à violência praticada, nos dias atuais, e o exemplo citado é também o caso de Daniela Perez. Diz a autora do texto”...realmente este assassinato me fez ser a favor da pena de morte aqui no Brasil...no imediato do assassinato eu fui radicalmente a favor da pena de morte, e ainda sou...”.
Pode-se perceber portanto que analisar textos como enunciados, no sentido bakhtiniano, permite distinguir, entre textos aparentemente semelhantes, a singularidade de cada um deles e as flutuações das posições de sujeito.
Em síntese, este outro modo de olhar o texto, no processo de ensino e aprendizagem da língua materna, não significa voltar ao estudo dos conteúdos, mas sim, em compreendendo a linguagem como uma prática discursiva, possibilitar ao aluno exercitar-se criticamente, reconhecer nos seus enunciados, em sua produção discursiva, suas próprias vozes e os processos de apropriação das vozes alheias, as posições de sujeito com as quais se identifica, e para quais valores sociais, éticos e morais, sinalizam. Desta maneira, entendemos, o ensino da língua materna poderá caminhar na direção apontada neste artigo,
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qual seja a de contribuir para a formação de um cidadão crítico e reflexivo, a partir do reconhecimento e conscientização de seu próprio discurso e do discurso alheio.

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

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http://www.gelne.ufc.br/revista_ano4_no1_31.pdf
08/02/2011, 10:49

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