quinta-feira, 5 de setembro de 2019

BAKHTIN, Mikhail. Questões de literatura e de estética: a teoria do romance. Trad. Aurora Fornoni Bernardini et al. 7 ed. São Paulo. Hucitec. 2014.


BAKHTIN, Mikhail. Questões de literatura e de estética: a teoria do romance. Trad. Aurora Fornoni Bernardini et al. 7 ed. São Paulo. Hucitec. 2014. 439 p. {Linguagem e cultura, 18}.

Bakhtin - Questões de literatura e de estética

O problema do Conteúdo, do Material e da Forma na Criação Literária

I – Crítica da arte e estética geral

“[…] sem uma concepção sistmática do campo estético, tanto no que o diferencia do campo do cognoscível e do ético, como no que o liga a eles na unidade da cultura, não se pode separar o objeto submetido a um estudo de poética – a obra de arte literária – da massa de obras escritas com palavras, mas de um outro gênero […]” (p. 15).

“[…] um significado isolado é uma contradictio in adjecto” (p. 16).

“[…] é o conteúdo da atividade estética (contemplação) orientada sobre a obra que constitui o objeto da análise estética” (p. 22).

Compreender o objeto estético na sua singularidade e estrutura puramente artística, estrutura que a partir de agora chamaremos de objeto estético arquitetônico, é a primeira tarefa da análise estética” (p. 22).

“A estrutura da obra, compreendida teleologicamente como realizando um objeto estético, nós denominaremos composição da obra” (p. 22).

“A não diferenciação dos três momentos assinalados: a) o objeto estético, b) o dado material, extra-estético da obra, c) a organização composicional do material, concebida teleologicamente – acarreta muita ambiguidade e imprecisão ao trabalho da estética material (o mesmo se aplica a quase todas as teorias da arte)” (p. 23).

O romance é uma forma puramente composicional de organização das massas verbais, por ela se constitui num objeto estético a forma arquitetônica da realização a forma arquitetônica da realização artística de um acontecimento histórico ou social, que constitui uma variante da forma da realização épica. O drama é uma forma composicional (diálogo, desmembramento em atos, etc), mas o trágico e o cômico são formas arquitetônicas de realização” (p. 24).

A forma do lírico é arquitetônica, mas existem formas composicionais de poesia líricas” (p. 24).

O humor, a heroificação, o tipo, o caráter, são formas puramente arquitetônicas, mas é evidente que são realizadas por métodos composicionais definidos; o poema, o conto, a novela, são formas de gênero puramente composicionais; o capítulo, a estrofe, o verso, são articulações puramente composicionais (embora possam ser compreendidos de modo estritamente linguísticos, isto é, independente do seu telos estético)” (p. 24).

“O ritmo pode ser compreendido de uma maneira ou de outra, isto é, como forma arquitetônica ou como forma composicional: como forma de ordenação do material sonoro, empiricamente percebido, audível e cognoscível, o ritmo é composicional; controlado emocionalmente, relativo ao valor da aspiração e da tensão interiores que ele realiza, o ritmo é composicional; controlado emocionalmente, relativo ao valor da aspiração e da tensão interiores que ele realiza, o ritmo é arquitetônico” (p. 24).

“As formas arquitetônicas são as formas dos valores morais e físicos do homem estético” (p. 25).

“As formas composiconais que organizam o material têm um caráter teleológico, utilitário, como que inquieto, e estão sujeitas a uma avaliação puramente técnica, para determinar quão adequadamente elas realizam a tarefa arquitetônica. A forma arquitetônica determina a escolha da forma composicional […]” (p. 25).

“As formas arquitetônicas principais são comuns a todas as artes […]” (p. 25).

“A correta colocação do problema do estilo, um dos problemas mais importantes da estética, é impossível sem uma rigorosa distinção entre formas arquitetônicas e composcionais” (p. 26).

“O que é estético se realiza plenamente só na arte [...]” (p. 26).

II – O problema do conteúdo

“Não há território interior no domínio cultural: ele está inteiramente situado sobre fronteiras, fronteiras que passam por todo lugar, através de cada momento seu, e a unidade sistemática da cultura se estende aos átomos da vida cultural, como o sol se reflete em cada gota. Todo ato cultural vive por essência sobre fronteiras: nisso está sua seriedade e importância; abstraído da fronteira, ele perde terreno, torna-se vazio, pretencioso, degenera e morre” (p. 29).

“É somente nessa sua sistematização concreta, ou seja, no relacionamento e na orientação direta para unidade da cultura que o fenômeno deixa de ser um mero fato, simplesmente existente, adquire significação, sentido, transforma-se como que numa mônada que reflete tudo em si e que está refletida em tudo” (p. 29).

“[…] o ato cognitivo encontra uma realidade já elaborada nos conceitos do pensamento pré-científico, mas, o que é primordial, o pensamento já vem apreciado e regulamentado pelo procedimento ético, prático e cotidiano, social e político; encontra-a religiosamente afirmada; e, finalmente, o ato cognitivo provém da representação esteticamente ordenada do objeto, da visão do objeto” (p. 30).

“A realidade oposta à arte só pode ser a realidade do conhecimento e do comportamento ético em todas as suas variantes: a realidade da vida cotidiana, realidade econômica, social, política e sobretudo moral” (p. 30).

“Cumpre assinalar que, noplanodo pensamento habitual, a realidade oposta à arte (em tais casos, aliás, gosta-se de empregar a palavra ‘vida’) já é essencialmente estetizada” (p. 30).

“Naturalmente, o mundo do ato ético e o mundo da beleza transformam-se eles mesmos em objetos do conhecimento, mas com isso não introduzem nele de maneira alguma seus valores e suas leis próprias; para tornarem-se significantes do ponto de vista cognoscível, eles devem submeter-se inteiramente à sua unidade e à sua lei” (p. 32).

“A atividade estética não cria uma realidade inteiramente nova. Diferentemente do conhecimento e do ato, que criam a natureza e a humanidade social, a arte celebra, orna, evoca essa realidade preexistente do conhecimento e do ato – a natureza e a humanidade social – enriquece-as e completa-as, e sobretudo ela cria a unidade concreta e intuitiva desses dois mundo, coloca o homem na natureza, compreendida como seu ambiente estético, humaniza a natureza e naturaliza o homem” (p. 33).

“Quase todas as categorias do pensamento humano acerca do mundo ou do homem, categorias boas, receptivas e enriquecedoras, otimistas (não religiosas, é claro, mas puramente leigas) tem um caráter estético; estética também é a eterna tendência desse pensamento em imaginar o que é dever e obrigação como já dado e presente em algum lugar, tendência que criou o pensamento mitológico e, em grau significativo, também metafísico” (p. 34).

“[…] chamamos de conteúdo da obra de arte (mais precisamente, do objeto estético) à realidade do conhecimento e do ato estético, que entra com sua identificação e avaliação no objeto estético e é submetida a uma unificação concreta, intuitiva, a uma individualização, a uma concretização, a um isolamento e a um acabamento, ou seja, a uma formalização multiforme com a ajuda de um material determinado” (p. 35).

“O conteúdo representa o momento constitutivo indispensável do objeto estético, ao qual é correlativa a forma estética que, fora dessa relação, em geral, não tem nenhum significado” (p. 35).

“Fora da relação com o conteúdo, ou seja, com o mundo e os seus momentos, mundo como objeto do conhecimento e do ato ético, a forma não pode ser esteticamente significante, não pode realizar suas funções fundamentais” (p. 35).

“[…] a composição axiológica da realidade vivida multilateralmente, é o evento da realidade” (p. 35).

“[…] sem ter uma participação axiológica em certo grau, não se pode congemplar o acontecimento enquanto acontecimento” (p. 36).

“[…] para que a forma tenha um significado puramente estético, o conteúdo que a envolve deve ter um sentido ético e cogitivo possível, a forma precisa do peso extra-estético do conteúdo, sem o qual ela não pode realizar-se enquanto forma” (p. 37).

“O elemento ético-cognitivo do conteúdo […]” (p. 37).

“Na obra de arte existem como que dois poderes e duas ordens legais por eles determinadas: cada elemento pode ser definido em dois sistemas axiológicos, o do conteúdo e o da forma, pois em cada momento significante ambos os sistemas encontram-se numa interação essencial e axiologicamente tensa” (p. 38).

“Só é diretamente ético o próprio acontecimento do ato (ato-pensamento, ato-ação, ato-sentimento, ato-desejo, etc) na sua realização viva vinda de dentro do próprio conhecimento agente […]” (p. 39).

“A empatia e a co-avaliação simpática ainda não tem por si só um caráter estético. O conteúdo de empatia é ético […]” (p. 39).

“O elemento do reconhecimento cognitivo acompanha por toda parte a atividade da criação e da contemplação artísticas, mas na maioria dos casos ele é inseparável do elemento ético e não pode ser expresso por um julgamento adequado” (p. 40).

“[…] o que é verdadeiro do ponto de vista cognitivo torna-se elemento da realização ética” (p. 41).

“[…] o elemento ético não possui limites em profundidade que possam ser transgredidos ilegitimamente: a obra não predetermina e não pode predeterminar os graus de profundidade do elemento ético” (p. 43).

“Em princípio é possível atingir um elevado grau de cientificidade […], mas, de fato, a análise do conteúdo é extremamente difícl, e em geral não se pode escapar a uma certa dose de subjetividade […]” (p. 44).

III – O problema do material

“Dotando a palavra de tudo o que é próprio à cultura, isto é, de todas as significações culturais (cognitivas, éticas e estéticas) chega-se bem facilmente à conclusão de que não existe absolutamente nada na cultura além da palavra, que toda a cultura não é nada mais que um fenômeno da língua, que o sáio e o poeta, em igaul medida, se relacionam somente com a palavra. Pois, dissolvendo a lógica e a estética, ou mesmo só a poética, na linguística, nós destruímis a originalidade tanto do campo lógico e estético como, em igual medida, do campo linguístico” (p. 45).

“A linguística só é uma ciência na medida em que domina o seu objeto: a língua. A língua é definida linguisticamente por um pensamento puramente linguístico. Um enunciado isolado e concreto sempre é dado num contexto cultural e semântico-axiológico (científico, artístico, político, etc) ou no contexto de uma situação isolada da vida privada; apenas nesses contextos o enunciado isolado é vivo e compreensível: ele é verdadeiro ou falso, belo ou disforme, sincero ou malicioso, franco, cínico, autoritário e assim por diante. Não há enunciados neutros, nem pode haver; mas a linguística vê neles somente o fenômeno da língua, relaciona-os apenas com a unidade da língua, mas não com a unidade de conceito, de prática de vida, da História, do caráter de um indivíduo, etc” (p. 46).

E o sentido da palavra, o seu significado material, é para a linguística apenas um momento da palavra linguisticamente determinada, legitimamente retirado do contexto cultural, semântico, no qual a palavra realmente foi proferida” (p. 46).

“Apenas libertando-se sistematicamente da tendência metafísica (a substancialização e a reificação da palavra), do logismo, do psicologismo, do estetismo, é que a linguística constrói o caminho em direção ao seu objeto, concebe-o metodicamente e com isso torna-se pela primeira vez uma ciência” (p. 47).

“Não foi em todos os campos que a linguística soube dominar uniformemente o seu objeto de forma metódica: ela apenas começa agora a dominá-lo, com dificuldade, na sintaxe, […]: até hoje, a linguística ainda não ultrapassou cientificamente a oração complexa: este é o mais longo fenômeno da língua já explorado linguística e cientificamente […]” (p. 47).

“[…] a poesi precisa da língua por inteiro, de todos os lados e com todos os seus elementos; ela não permanece indiferente a nenhuma nuança da palavra na sua determinação linguistica” (p. 48).

“[…] os elementos técnicos são os fatores da impressão artística, e não os constituintes esteticamente significativos do conteúdo dessa impressão, ou seja, do objeto estético” (p. 49).

“Natualmente, a análise linguística encontraria palavras, orações, etc.; a análise física encontraria o papel, a tinta de imprimir […]. Todos esses julgamentos científicos de especialistas […] serão necessários ao esteta no seu trabalho de estudo da estrutura da obra na sua determinação extra-estética” (p. 49).

“[…] o objeto estético cresce nas fronteiras das palavras, nas fronteiras da língua enquanto tal […]” (p. 50).

A superação imanente é a definição formal da relação com o material não só na poesia, mas em todas as artes” (p. 50).

“O processo de realização do objeto estético, ou melhor, da tarefa artística na sua essência, é um processo de transformação sistemática de um conjunto verbal, compreendido linguística e composicionalmente, no todo arquitetônico de um evento esteticamente acabado; naturalmente, todas as ligações e interl-relações (sic) verbais de ordem linguística e composicional transformam-se em relações arquitetônicas” (p. 51).

“[…] o artista nunca lida com objetos e sim com palavras […]” (p. 52).

O artista só lida com palavras, pois apenas elas são algo definido e indiscutivelmente presente na obra” (p. 52).

“[…] significação axiológica (a estética psicológica diria: o elemento emocional e volitivo correspondente […])” (p. 53).


“[…] o componente estético, que, por ora chamaremos de imagem, não é nem um conceito nem uma palavra, nem uma representação visual, mas uma formação estético-singular […]” (p. 53).

“[…] tendência para uma empirização extra-estética e uma psicologização do objeto artístico […]” (p. 54).

“A importância das análises materiais para a estética especializada é extremamente grande, tão grande quanto a importância da obra material e da sua elaboração para o artista e o contemplador” (p. 55).


IV – O problema da forma

“A forma desmaterializa-se e sai dos limites da obra enquanto material organizado só quando se transforma numa expressão da atividade criativa, determinada axiologicamente, de um sujeito esteticamente ativo” (p. 57).

“Eu me torno ativo na forma e por meio dela ocupo uma posição axiológica fora do conteúdo (enquanto orientação cognitiva e ética) e isto torna possivel pela primeira vez o acabamento e em geral a realização de todas as funções estéticas da forma no que tange ao conteúdo” (p. 59).

“[…] a função primeira da forma no que concerne ao conteúdo: trata-se do isolamento ou separação” (p. 59).

“O isolamento desreifica de novo: uma coisa isolada é uma contradictio in adjecto” (p. 60).

“[…] uma coisa inventada é uma contradictio in adjecto. (p. 60).

“Na realidade, o isolamento consiste em separar o objeto, o valor e o acontecimento da série ética e cognitiva indispensável” (p. 61).

“Distinguimos os seguintes elementos da palavra enquanto material: 1. o aspecto sonoro […]; 2. o significado material […]; 3. o momento de ligação vocabular […]; 4. o momento intonacional (no plano psicológico, emocional e volitivo) […]; 5. o sentimento da atividade vocabular […]” (p. 62).

“[…] sentimento de uma atividade de elocução significante, que deve ser sentida como continuamente como atividade única, independentemente da unidade objetal e semântica do seu conteúdo. […] a unidade não é do objeto nem do acontecimento, mas é a unidade de um envolvimento, de um englobamento do objeto e do acontecimento” (p. 63).

“[…] relação axiologicamente determinada (no plano psicológico, possui uma tonalidade emocional-volitiva determinada). […]. Por aspecto entoacional da palavra compreendemos a sua capacidade de exprimir toda a multiplicidade das relações axiológicas do indivíduo falante com o conteúdo do enunciado (no plano psicológico a multiplicidade das ações emocionais e volitivas do falante) […] numa entonação real durante a execução […]” (p. 64).

“A atividade do autor torna-se a atividade de uma avaliação expressa, que matiza todos os aspectos da palavra […]” (p. 64-65).

“[…] a atividade geradora apodera-se das ligações verbais significantes (a compação, a metáfora; a utilização composicional das ligações sintáticas, das repetições, dos paralelismos, da forma interrogativa; a utilização composicional das ligações hipotáxicas e paratáxicas, etc.) […]. Assim, uma comparação ou uma metáfora apóiam-se na unidade de uma ativdade de avaliação. […]. Abstraída do sentimento de uma atividade do autor, ligadora e formadora, a metáfora perece, isto é, deixa de ser metáfora poética, ou se torna um mito (como simples metáfora linguística, ela pode servir muito bem aos objetivos do enunciado cognitivo)” (p. 65).

“[…] o significado objetal material da palavra é envolto pelo sentimento de uma atividade de seleção do significado, pelo sentimento singular da iniciativa do sujeito-criador […]” (p. 65).

“O autor, como momento constitutivo da forma, é a atividade, organizada e oriunda do interior, do homem como totalidade, que realiza plenamente a sua tarefa […]” (p. 68).

“O objeto estético é uma criação que inclui em si o criador […]” (p. 69).

“A forma artisticamente criativa dá formas antes de tudo ao homem, depois ao mundo, mas mundo somente enquanto mundo do homem. […] a relação da forma com o conteúdo, na unidade do objeto, assume um caráter singular e pessoal, enquanto o objeto estético apresenta-se como algum acontecimento original e realizado da ação e da interação do criador e do mundo” (p. 69).

O discurso no Romance

“A forma e o conteúdo estão unidos no discurso, entendido como fenômeno social – social em todas as esferas de sua existência e em todos os seus momentos – desde a imagem sonora até os estratos semânticos mais abastratos” (p. 71).

I – A estilística contemporânea e o romance

“Até o século XX não havia uma colocação nítida dos problemas estilísticos do romance […]” (p. 72).

“O romance, tomado como um conjunto, caracteriza-se como um fenômeno pluriestilístico, plurilíngue e plurivocal. O pesquisador depara-se nele com certas unidades estilísticas heterogêneas que repousam às vezes em planos linguísticos diferentes e que estão submetidas a leis estilísticas distintas” (p. 73).

As “ligações e correlações entre as enunciações e as línguas (paroles – langues), este movimento do tema que passa através de línguas e discursos, a sua segmentação em filetes e gotas de plurilinguismo social, sua dialogização, enfim, eis a singularidade fundamental da estilística romanesca” (p. 75).

“O romance não exige apenas estas condições pois, conforme dissemos, a verdadeira premissa da prosa romanesca está na estratificação interna da linguagem, na sua diversidade social de linguagens e na divergência de vozes individuais que ela encerra” (p. 76).

“[…] todas as categorias e métodos da estilística tradicional são incapazes de dar conta das particularidades literárias do discurso romanesco e da sua existência específica” (p. 77).

 “[…] aspectos próprios a qualquer discurso (sua dialogização interna e os fenômenos que o acompanham) […]” (p. 79).

“Tomamos a língua não como como um sistema de categorias gramaticais abstratas, mas como uma língua ideologicamente saturada, como uma concepção de mundo, e até como uma opinião concreta que garante um maximum de compreensão mútua, em todas as esferas da vida ideológica” (p. 81).

“[…] a estratificação e o plurilinguismo ampliam-se e aprofundam-se na medida em eu a língua está viva e desenvolvendo-se; ao lado das forças centrípetas  caminha o trabalho contínuo das forças centrífugas da língua, ao lado da centralização verbo-ideológica e da união caminham ininterruptos os processos de descentralização e desunificação” (p. 82).

“Cada enunciação concreta do sujeito do discurso constitui o ponto de aplicação seja das forças centrípetas, como das centrífugas. Os processos de centralização e descentralização, de unificação e de desunificação cruzam-se nesta enunciação, e ela basta não apenas à língua, como sua encarnação discursiva individualizada, mas também ao plurilinguismo, tornando-se seu participante ativo. Esta participação ativa de cada enunciação define para o plurilinguismo vivo o seu aspecto linguístico e o estilo da enunciação […]. Cada enunciação […] pertence também, ao mesmo tempo, ao plurilinguismo social e histórico (às forças centrífugas e estratificadoras)” (p. 82).

“A filosofia da linguagem, a linguística e a estilística, nascidas e formadas no curso das tendências centralizadoras da vida linguística, ignoravam este plurilinguismo dialogizado que personificava as forças centrífugas dessa mesna vida. […]. Pode-se mesmo dizer que o aspecto dialógico do discurso e todos os fenômenos a ele ligados permaneceram até a época recente fora do âmbito da linguística” (p. 83).

“Do ponto de vista ideológico, a ‘consciência linguística’, real, saturada de ideologia, participante de um plurilinguismo e de uma plurivocidade autêntica, permanecia fora do campo de visão dos estudiosos” (p. 84).

II – O discurso na poesia e o discurso no romance

“Pois todo discurso concreto (enunciação) encontra aquele objeto para o qual está voltado sempre […]. Orientado para o seu objeto, o discurso penetra neste meio dialogicamente perturbado e tenso de discursos de outrem, de julgamentos e de entonações” (p. 86).

“O enunciado existente, surgido de maneira significativa num determinado momento social e histórico, não pode deixar de tocar os milhares de fios dialógicos existentes, tecidos pela consciência ideológica em torno de um dado objeto da enunciação, , não pode deixar de ser participante ativo do diálogo social. Ele também surge desse diálogo como seu prolongamento, como sua réplica […]” (p. 86).

“[…] opiniões sociais multidiscursivas […]” (p. 86).

“Se representarmos a intenção, isto é, a orientação sobre o objeto de tal discurso pela forma de um raio, então nós explicaremos o jogo vivo e inimitável de cores e luzes nas facetas da imagem que é construída por elas, devido à refração do discurso-raio […] naquele meio de discursos alheios, de apreciações e de entonações […]. A atmosfera social do discurso que envolve o objeto faz brilhar as facetas de sua imagem.” (p. 87).

“[…] o objeto revela antes de tudo justamente esta multiformidade social plurilíngue dos seus nomes, definições e avaliações” (p. 87).

“A orientação dialógica é naturalmente um fenômeno próprio a todo o discurso. Trata-se da orientação natural de qualquer discurso vivo. Em todos os seus caminhos até o objeto, em todas direções, o discurso se encontra com o discurso de outrem e não pode deixar de participar, com ele, de uma interação viva e tensa. Apenas o Adão mítico que chegou com a primeira palavra num mundo  virgem, ainda não desacreditado, somente este Adão podia realmente evitar por completo esta mútua orientação dialógica do discurso alheio para o objeto. Para o discurso humano, concreto e histórico, isso não é possível: só em certa medida e convencionalmente é que pode dela se afastar” (p. 88).

“O mais surpreendente é que a filosofia da linguagem e a linguística tenham-se orientado, de preferência, justamente segundo esta condição artificial e convencional de discurso retirado do diálogo aceitando-o como normal (apesar de que o primado do diálogo sobre o monólogo tenha sido frequentemente proclamado). O diálogo era estudado apenas como forma cmposicional da construção do discurso, mas a dialogicidade interna do discurso (tanto no réplica, como na enunciação monológica) que penetra em toda a sua estrutura, todos os seus estratos semânticos e expressivos, foram quase que absolutamente ignorados. É justamente esta dialogicidade interna do discurso, que não aceita formas dialógicas externas de composição, que não se destaca como ato independente da concepção que o discurso tem de seu objeto […]” (p. 88).

“O discurso nasce no diálogo como sua réplica viva, forma-se na mútua-orientação dialógica do discurso de outrem no interior do objeto. A concepção que o discurso tem deseu objeto é dialógica” (p. 88, 89).

“Todo discurso é orientado para a resposta e ele não pode esquivar-se à influência profunda do discurso da resposta antecipada” (p. 89).

“Todas as formas retóricas e monológicas por sua construção composicional, estão ajustadas no ouvinte e na sua resposta. […] a orientação para a resposta é aberta, manifesta e concreta” (p. 89).

“A resposta compreensível é a força essencial que participa da formação do discurso e, principalmente, da compreensão ativa, percebendo o discurso como oposição ou reforço e enriquecendo-o” (p. 89).

“A filosofia da linguagem e a linguística conhecem apenas a compreensão passiva do discurso, sobretudo no plano da língua geral, isto é, a compreensão do significado neutro da enunciação, e não do seu sentido atual” (p. 90).

“[…] toda compreensão concreta é ativa […]. A compreensão amadurece apenas na resposta. A compreensão e a resposta estão fundidas dialeticamente e reciprocamente condicionadas, sendo impossível uma sem a outra” (p. 90).

“[…] consciência social e verbal plurilíngue que enreda o objeto. […] horizonte objetal e axiológico do leitor […]” (p. 91).

“[…] consciência social pluridiscursiva […]” (p. 91).

“O estilo compreende organicamente em si as indicações externas, a correlação de seus elementos próprios com aqueles do contexto de outrem. A política interna do estilo (combinação dos elementos) determina sua política exterior (em relação ao discurso de outrem). O discurso como que vive na fronteira do seu próprio contexto e daquele de outrem” (p. 92).

“A réplica de qualquer diálogo real encerra esta dupla existência: ela é construída e compreendida no contexto de todo o diálogo, o qual se constitui a partir de suas enunciações (do ponto de vista do falante) e das enunciações de outrem (do partner). Não é possível retirar uma única réplica deste contexto misto de discursos próprios e alheios sem que se perca seu sentido e seu tom, ela é uma parte orgânica de um todo plurívoco” (p. 92).

“O fenômeno da dialogicidade interna […], em maior ou meno grau, encontra-se manifesto em todas as esferas do discurso vivo” (p. 92).

“Na maioria dos gêneros poéticos (no sentido restrito do termo) […] a dialogicidade interna do discurso não é utilizada de maneira literária […]” (p. 92).

“[…] um homem envolvido pelo plurilinguismo e pela polifonia vivos […]” (p. 93).

“A unidade e a unicidade da linguagem são condições obrigatórias para realizar a individualidade intencional e direta do estilo poético e da sua estabilidade monológica” (p. 94).

Bakhtin (2014, p. 94) cita a existência de “plurilinguismo ou mesmo o multilinguismo […] na obra poética” e de “elementos do plurilinguismo” (p. 95).

“A língua, enuanto meio vivo e concreto onde vive a consciência do artista da palavra, nunca é única. Ela é única somente como sistema gramatical abstrato de formas normativas, abstraída das percepções ideológicas concretas que a preenche e da contínua evolução histórica da linguagem viva” (p. 96).

A “estratificação é determinada, antes de tudo, pelos organismos específicos dos gêneros. Estes ou aqueles elementos da língua (lexico-lógicos, semânticos, sintáticos, etc) estão estreitamente unidos com a orientação intencional e com o sistema geral de acentuação destes ou daqueles gêneros: oratórios, publicitários, gêneros de imprensa, gêneros jornalísticos, gêneros de literatura inferior (como o romance de folhetim, por exemplo) e, finalmente, os diversos gêneros da grande literatura” (p. 96).

“Toda manifestação verbal socialmente importante tem o poder, às vezes por longo tempo e um amplo círculo, de contagiar com suas intenções os elementos da linguagem que estão integrados na sua orientação semântica e expressiva, impondo-lhes nuanças de sentido e tons de valores definidos: deste modo, ela pode criar a palavra-slogan, a palavra-injúria, a palavra-louvor, etc” (p. 97).
“Desse modo, em cada momento da sua existência histórica, a linguagem é grandemente pluridiscursiva. Deve-se isso à coexistência de contradições sócio-ideológicas entre presente e passado […]” (p. 98).

“[…] todas as linguagens do plurilinguismo, qualquer que seja o princípio básico de seu isolamento, são pontos de vista específicos sobre o mundo, formas da sua interpretação verbal, perspectivas específicas objetais, semânticas e axiológicas” (p. 98).

“O discurso vive fora de si mesmo, na sua orientação viva sobre seu objeto […]. Estudar o discurso em si mesmo, ignorar a sua orientação externa, é algo tão absurdo como estudar o sofrimento psíquico fora da realidade a que está dirigido e pela qual ele é determinado” (p. 99).

“[…] entre as ‘linguagens’, quaisquer que elas sejam, são possíveis relações dialógicas (particulares), ou seja, elas podem ser percebidas como pontos de vistas sobre o mundo. Por mais diferentes que sejam as forças sociais que produzem o trabalho de estratificação (profissão, gênero, tendência, personalidade individual), este reduz-se a uma saturação da linguagem, saturação esta (relativamente) longa […]” (p. 99).

“Todas as palavras evocam uma profissão, um gênero, uma tendência, um partido, uma idade, uma obra determinada, uma pessoa definida, uma geração, uma idade, um dia, uma hora. Cada palavra evoca um contexto ou contextos nos quais ela viveu sua vida socialmente tensa; todas as palavras e formas são povoadas de intenções. Nelas são inevitáveis as harmônicas contextuais (de gêneros, de orientações, de indivíduos) (p. 100).

“A linguagem não é um meio neutro que se tornne fácil e livremente a propriedade intencional do falante; ela está povoada ou superpovoada de intenções de outrem. Dominá-la, submetê-la às próprias intenções e acentos é um processo difícil e complexo” (p. 100).

“A linguagem literária é um fenômeno profundamente original, […] torna-se plurilíngue: trata-se não de uma linguagem, mas de um diálogo de linguagens” (p. 101).

A consciência linguística, sócio-ideológica e concreta, ao se tornar artisticamente ativa, isto é, literariamente ativa, encontra-se de antemão envolvida por um pluridiscurso, e de modo algum por uma só linguagem, única, indiscutível e peremptória” (p. 101).

“[…] línguas diferentes, até mesmo do ponto de vista de índices abstratos sociais e dialetológicos” (p. 102). SOCIOLINGUÍSTICA E POLÍTICA LINGUÍSTICA.

“[…] plruidiscursividade ainda mais multiforme e profunda […]” (p. 103).

“O prosador-romancista não elimina as intenções alheias da língua feita de diferentes linguagens de suas oras, não destrói as perspectivas sócio-ideológicas (mundos e micromundos sócio-ideológicos) que se desenvolve além das linguagens do plurilinguismo, ele as introduz em sua obra. O prosador utiliza-se de discursos já povoados pelas intenções sociais de outrem, obrigando-os a servir às suas novas intenções sociais de outrem, a servir ao segundo senhor. Por conseguinte, as intenções do prosador refratam-se e o fazem sob diversos ângulos, segundo o caráter sócio-ideológico de outrem, segundo o reforçamento e a objetivação das linguagens que refratam o plurilinguismo” (p. 105).

“O diálogo chega a profundidades moleculares e no fim  atinge o interior dos átomos” (p. 106).

“Todas as palavras e formas que povoam  a linguagem são vozes sociais e históricas, que lhe dão determinadas significações concretas e que se organizam  no romance em um sistema estilístico harmonioso, expressando a posição sócio-ideológica diferenciada do autor no seio dos diferentes discursos da sua época” (p. 106).

III – O plurilinguismo no romance

“O estilo humorístico exige esse movimento vivo do autor em relação à lingua e vice-versa, essa mudança constante da distância e a sucessiva passagem de luz para sombra, ora de uns, ora de outros momentos da linguagem” (p. 108).

“Denominamos construção híbrida o enunciado que, segundo índices gramaticais (sintáticos) e composicionais, pertence a um único falante, mas onde, na realidade, estão  confundidos dois  enunciados, dois modos de falar, dois estilos, duas ‘linguagens’, duas perspectivas semânticas e axiológicas” (p. 110).

“[…] o estilo humorístico (do tipo inglês) baseia-se na estratificação da linguagem comum e na possibilidade de separar de algum modo as suas intenções dos seus estratos, sem se solidarizar inteiramente com eles,. É justamente o caráter plurilíngue, e não a unidade de uma linguagem comum normativa, que representa a base do estilo. […] a compreensão linguística é o momento abstrato de uma compreensão concreta e ativa (dialogicamente participante) do plurilinguismo vivo, introduzido no romance e literariamente organizado nele” (p. 113).

“As linguagens e as perspectivas sócio-ideológicas […] linguagens já constituídas, oficialmente reconhecidas […]” (p. 116).

“[…] perspectiva linguística, ideológico-verbal particular, de um ponto de vista peculiar sore o mundo e os acontecimentos, de apreciações e entonações específicas […]” (p. 117).

“[…] conjugação dialógica de duas linguagens e de duas perspectivas permitem que a intenção do autor se realize […]” (p. 119).

“Uma outra forma de introdução e organização do plurilinguismo no romance, utilizada por todos sem excessão, é a do discurso dos personagens” (p. 119).

ESTRATIFICAÇÃO E PLURILINGUISMO (p. 120).

“[…] o papel do personagem como fator de introdução do plurilinguismo” (p. 123).

“[…] os gêneros intercalados ou enquadrados são as formas fundamentais para introduzir e organizar o plurilinguismo no romance” (p. 127).

“O plurilinguismo introduzido no romance (quaisquer que sejam as formas de sua introdução), é o discurso de outrem na linguagem de outrem, que serve para refratar a expressão das intenções do autor. A palavra desse discurso é uma palavra bivocal especial. […] Nesse discurso há duas vozes, dois sentidos, duas expressões. Ademais, essas duas vozes estão dialogicamente correlacionadas […]. O discurso bivocal sempre é internamente dialogizado” (p. 127).

“Naturalmente, o discurso bivocal internamente dialogizado é possível também  num sistema linguístico fechado, puro e único, estranho ao relativismo linguístico da consciência da prosa, portanto, é possível nos gêneros poéticos puros” (p. 128).

“A dialogicidade interna do discurso autenticamente prosaico, que cresce de forma orgânica a partir de uma linguagem estratificada e plurilíngue, não pode ser substancialmente dramatizada e dramaticamente acabada (terminada de fato), ela não cabe inteiramente nos quadros de um diálogo direto, de uma conversa entre pessoas, não é totalmente divisível em réplicas nitidamente delimitadas. Essa bivocalidade prosaica  é pré-elaborada na própria linguagem (como também a verdadeira metáfora, como o mito) na linguagem enquanto fenômeno social formado historicamente, estratificado e dilacerado socialmente no decorrer da evolução” (p. 129).

“O discurso bivocal em prosa é ambíguo. Mas o discurso poético em sentido estrito é igualmente ambíguo e polissêmico. […]. O discurso poético é um tropo que exige que se percebam nele, os seus dois sentidos” (p. 130).

“[…] a ambiguidade (ou polissemia) do símbolo nunca acarreta a sua dupla acentuação” (p. 130).

O “plurilinguismo e […] sua produção específica: o discurso bivocal” (p. 130 – nota de rodapé).

“Para compreender a diferença entre a bissemia poética e a bivocalidade prosaica, basta perceber e acentuar ironicamente qualquer símbolo (é claro que num contexto substancial correspondente), isto é, introduzir nele a sua voz, refratar nele a sua intenção. Com isso, o símbolo poético, permanecendo símbolo, é claro, é transferido ao mesmo tempo para o plano prosaico, torna-se um discurso bivocal […]” (p. 131).

“A bissemia do discurso bivocal é dialogizada internamente, está prenhe de um diálogo e, de fato, pode gerar diálogos de vozes realmente divididas […] a bivocalidade autêntica não se esgota […] e permanece no discurso, a linguagem como uma fonte inexaurível de dialogicidade, pois a dialocidade interna do discurso é o acontecimento indispensável da estratificação da língua, a consequência de sua superpovoação de intenções plurilíngues. E essa estratificação e a superpovoação e a sobrecarga a ela ligadas, são o companheiro inevitável da transformação histórica, socialmente contraditória, da linguagem.” (p. 132). A CONSTITUIÇÃO PLURAL DOS SUJEITOS.

“A prosa literária pressupõe a percepção da concretude e da relatividade históricas e sociais da palavra viva, de sua participação na transformação histórica e na luta social; e ela toma a palavra ainda quente dessa luta e desta hostilidade, ainda não resolvida e dilacerada pelas entonações e acentos hostis e a submete à unidade dinâmica de seu estilo” (p. 133).
IV - A pessoa que fala no romance

“[…] o plurilinguismo social, a consciência da diversidade das linguagens do mundo e da sociedade […]” (p. 134).

“O principal objeto do gênero romanesco […] é o homem que fala e sua palavra” (p. 135).

Três momentos do gênero romanesco

“1. No romance, o homem que fala e sua palavra são objeto tanto de representação verbal como literária” (p. 135).

“2. O sujeito que fala no romance é um homem essencialmente social, historicamente concreto e definido e seu discurso é uma linguagem social (ainda que em embrião), e não um ‘dialeto individual’” (p. 135).  

“3. O sujeito que fala no romance é sempre, em certo grau, um ideólogo e suas palavras são sempre um ideologema” (p. 135).

“[…] o problema da imagem da linguagem e […] o enfoque da questão da transmissão da fala de outrem […]” (p. 138).

“Em todos os domínios da vida e da criação ideológica, nossa fala contém em abundância palavras de outrem, transmitidas com todos os graus variáveis de precisão e imparcialidade” (p. 139).

“A maioria das informações e opiniões e opiniões não são transmitidas geralmente, em forma direta, originária do próprio falante, mas referem-se a uma fonte geral indeterminada […]” (p. 140).

“[…] entre todas as palavras pronunciadas no cotidiano não menos que a metade provém de outrem” (p. 140).

“O contexto que avoluma a palavra de outrem origina um fundo dialógico cuja influência pode ser muito grande” (p. 141).

“[…] para a apreciação cotidiana e para adivinhar o significado verdadeiro das palavras de outrem pode ser decisivo saber-se quem fala e em que precisas circunstâncias. A compreensão e o julgamento cotidiano não separam a palavra da pessoa totalmente concreta do falante (o que é possível na esfera ideológica). Além disto, é muito importante situar a conversação; quem esteve presente no ato, que expressão tinha, como era sua mímica ao falar, quais as nuanças de sua entonação enquanto falava” (p. 141).

“A evolução ideológica do homem […] é um processo de escolha e de assimilação das palavras de outrem” (p. 142).

“[…] a palavra de outrem […] procura definir as próprias bases de nossa atitude ideológica em relação ao mundo de nosso comportamento, ela surge aqui como a palavra autoritária e como a palavra interiormente  persuasiva” (p. 142).

“O conflito e as interpretações dialógicas destas duas categorias da palavra [a autoritária e a persuasiva] determinam frequentemente a história da consciência ideológica individual” (p. 143).

“A vinculação da palavra com a autoridade – reconhecida por nós ou não – distingue e isola a palavra de maneira específica […]” (p. 143).

“A palavra autoritária não se representa – ela é apenas transmitida. […] Ela não pode ser essencialmente bivocal e ela entra nas construções híbridas” (p. 144).

“No fluxo de nossa consciência, a palavra persuasiva interior é comumente metade nossa, metade de outrem” (p. 145).

“[…] a palavra puramente autoritária, em outra época, pode tornar-se uma palavra interiormente persuasiva; isto se refere particularmente à moral” (p. 145) [nota de rodapé].

“A palavra interiormente persuasiva é uma palavra contemporânea, nascida numa zona de contato com o presente inacabado, ou tornado contemporâneo […]” (p. 146).

“Uma palavra, uma voz que é nossa , mas nascida de outrem, ou dialogicamente estimulada por ele, mais cedo ou mais tarde começará a se libertar do domínio da palavra do outro” (p. 147-148).

“[…] processos de transmissão de elaboração e de enquadramento da palavra de outrem” (p. 149).

“Todos os sistemas religiosos, mesmo os primitivos, possuem à sua disposição um imenso aparato especial e metodológico que transmite e interpreta os diferentes aspectos da palavra divina (hermeneutica)” (p. 150).

“Todo o aparato metodológico das ciências matemáticas e naturais se orienta para o domínio do objeto reificado, mudo que não se revela na palavra, e que não comunica nada a respeito de si mesmo” (p. 150).

“Nas ciências humanitárias, à diferença das ciências naturais e matemáticas, surge a questão específica do restabelecimento, da transmissão e da interpretação das palavras de outrem (por exemplo, o problema das fontes na metodologia das disciplinas históricas)” (p. 150).

“A palavra pode ser inteiramente percebida de modo objetal (como uma coisa). Assim é a maioria das disciplinas linguísticas. Nessa palavra tomada como objeto, o sentido também é reificado: ele não permite nenhuma aproximação dialógica imanente a toda concepção profunda e atual. Por isso o conhecimento aqui é abstrato: ele se desvia inteiramente da significação ideológica da palavra viva […]. O conhecimento dessa palavra objetivada e coisificada carece de toda penetração dialógica num sentido cognoscível e com tal palavra não se pode conversar” (p. 151).

“As formas de transmissão e de interpretação que realizam esta cognição dialógica podem, por pouco profunda e viva que seja a cognição, relacionar-se com uma representação literária bivocal da palavra de outrem” (p. 151).

O “homem social, de quem todo ato essencial é interpretado ideologicamente pela palavra ou diretamente encarnado nela” (p. 152).

“Com base na retórica é possível até elaborar uma representação literária do homem que fala e daquilo que ele diz; porém a bivocalidade retórica dessas representações é raramente profunda: com suas raízes no caráter dialógico da linguagem em transformação ela se constrói sobre um plurilinguismo substancial mas sobre discordâncias; na maioria dos casos, ela é abstrata e sucumbe a uma delimitação e a uma subdivisão formal e lógica das vozes” (p. 153).

“[…] na composição de quase todo enunciado do homem social – desde a curta réplica do diálogo familiar até as grandes obras verbo-ideológicas (literárias, científicas e outras), existe, numa forma aberta ou velada, uma parte considerável de palavras significativas de outrem, transmitidas por um ou outro processo. No campo de quase todo enunciado ocorre uma interação tensa e um conflito entre sua palavra e a de outrem, um processo de delimitação ou de esclarecimento dialógico mútuo. Desta forma o enunciado é um organismo muito mais complexo e dinâmico do que parece, se não se considerar apenas sua orientação objetal e sua expressividade unívoca direta” (p. 153).

“[…] entendemos como ‘linguagem social’ não o conjunto dos signos que determinam a valorização dialetológica e a singularização da linguagem, mas precisamente uma entidade cocnreta e viva dos signos, sua singularização social, a qual pode se realizar também nos quadros de uma linguagem linguisticamente única, determinando-se pelas transformações semânticas e pelas seleções lexicológicas” (p. 154).

“As particularidades formais das linguagens, dos modos e dos estilos no romance são símbolos de perspectivas sociais” (p. 155).

“O contexto que enquadra, lapida os contornos do discurso de outrem como o cinzel do escultor e entalha uma imagem de língua no empirismo frusto da vida do discurso […]. O discurso do autor representa e enquadra o discurso de outrem, cria uma perspectiva para ele […]” (p. 156).

“Pode-se relacionar todos os procedimentos de criação do modelo da linguagem no romance em três categorias  básicas: 1. Hibridização, 2. Inter-relação dialogizada das linguagens, 3. Diálogos puros” (p. 156).

“A hibridização é “a mistura de duas linguagens sociais no interior de um único enunciado, é o reencontro na arena desde enunciado de duas consciências linguisticas, separadas por uma época, por uma diferença social (ou por ambas) das línguas” (p. 156).

“[…] num híbrido intencional e consciente não se misturam  duas consciências linguísticas impessoais […], porém duas consciências linguísticas individualizadas […] e duas vontades linguísticas individuais: a consciência e a vontade individuais do autor que representa a consciência e a vontade linguística de um personagem representado. Pois é sobre esta linguagem representada que se constroem os enunciados concretos […]” (p. 157).

“[…] o híbrido romanesco não é apenas bivocal e duplamente acentuado (como na retórica), mas bilíngue; ele inclui não apenas duas consciências sócio-linguísticas, duas épocas que na verdade não estão inconscientemente misturadas (como no híbrido orgânico), mas se enfrentam conscientemente e lutam sobre o campo do enunciado” (p. 158).

“[…] um híbrido literário intencional é um híbrido semântico, porém abstratamente semântico, lógico (como na retórica) mas de sentido social concreto” (p. 158).

“O híbrido semântico intencional é necessariamente dialogizado interiormente (à diferença do híbrido orgânico)” (p. 158).

“[…] a bivocalidade intencional e o híbrido internamente dialogizado possuem uma estrutura sintática bastante específica: nos limites de seu enunciado estão fundidos dois enunciados potenciais, como que duas réplicas de um possível diálogo. […]. A construção sintática dos híbridos intencionais é rompida por duas vontades linguísticas individualizadas” (p. 158).

“A hibridização intencional orientada para a arte literária é um dos procedimentos essenciais da construção da imagem da língua” (p. 159).

“Tanto o significado da estilização direta, como da variação é enorme na história do romance, cedendo lugar apenas ao significado da paródia” (p. 160).

“O diálogo do romance enquanto forma composicional está indissoluvelmente ligado ao diálogo das linguagens que ecoa nos híbridos e no pano de fundo dialógico do romance” (p. 161).

“A criação da representação das linguagens é o problema estilístico primordial do gênero romanesco. Qualquer romance, na sua totalidade, […] é um híbrido” (p. 162).

“O romance […] requer […] o conhecimento das linguagens do plurilinguismo. O romance requer uma expansão e aprofundamento do horizonte linguístico, um aguçamento de nossa percepção das diferenciações sócio-linguísticas” (p. 163).

V – Duas linhas estilísticas do romance europeu

“O romance é a expressão da consciência galileana da linguagem que rejeitou o absolutismo de uma língua só e única, ou seja, o reconhecimento da sua língua como o único centro semântico-verbal do mundo ideológico […]. O romance pressupõe uma descentralização semântico-verbal do mundo ideológico […]” (p. 164).

“É preciso habituar-se à palavra enquanto fenômeno objetal, característico, mas ao mesmo tempo também intencional […]” (p. 165).

“[…] pontos de vista, […] visões e percepções do mundo que estão organicamente unidas à linguagem que as esprime” (p. 165).

“A descentralização do mundo ideológico-verbal, que encontra sua expressão no romance, pressupõe um grupo social fortemente diferenciado, grupo este que se encontra numa interação tensa e essencial com outros sociais. […]. Pouco importa se esse plurilinguismo extranacional não penetra no sistema da linguagem literária e dos gêneros em prosa (coomo penetram os dialetos extraliterários da mesma linguagem); esse plurilinguismo exterior irá reforçar e aprofundar as diversas linguagens internas da própria língua literária, irá debilitar o poder das lendas e das tradições que ainda paralisam a consciência linguística, decomporá o sistema do mito nacional, organicamente soldado à língua e, propriamente, destruirá totalmente o sentimento mítico e mágico da linguagem e da palavra” (p. 165).

“A soldagem absoluta entre a palavra e o sentido ideológico concreto é, sem dúvida, uma das particularidades constitutivas essenciais do mito que, por um lado, determina a evolução das representações mitológicas, e, por outro, uma percepção específica das formas linguísticas dos significados e das combinações estilísticas” (p. 166).

“[…] plurilinguismo social das línguas nacionais faladas” (p. 167).

“De todas as formas retóricas do helenismo, é a diatribe que comporta a maior quantidade de potencialidades de romance em prosa […]” (p. 168 - [nota de rodapé]).

“[…] plano semântico-vocabular […]” (p. 169).

“A paródia, se não é grosseirA […] é geralmente muito difícil que revele o seu segundo contexto sem conhecer o seu fundo verbal alheio” (p. 170).

“A presença de uma estilização paródica e de outras variedades do discurso bivocal no romance sofista é indiscutível […]” (p. 170).

“O romance sofista deu início à primeira linha estilística do romance europeu […]” (p. 171).

“O estilo é definido por uma relação criativa e substancial do discurso com o seu objeto, com o próprio falante e com o discurso de outrem; ele tende a fazer com que o material se comunique organicamente com a linguagem e a linguagem com o material” (p. 173-174).

“[…] uma consciência linguística profundamente relativizada pela diversidade das linguagens e das línguas” (p. 191).

“[…] a linguagem literária torna-se um diálogo de linguagens que se correspondem umas às outras” (p. 191-192).

“Na compreensão do discurso, não é importante o seu sentido direto, objetal e expressivo – essa é a sua falsa aparência – o que importa é a utilização real e sempre interessada desse sentido e dessa expressão pelo falante, utilização determinada pela sua posição (profissão, classe) e pela sua situação concreta. Quem fala e em que condições fala” (p. 192).

“O bufão é uma das figuras mais antigas da literatura, e a linguagem do bufão, determinada pela sua específica posição social (os privilégios do bufão), é uma das formas mais antigas do discurso humano na arte. No romance, as funções estilísticas do bufão, como as funções do trapaceiro e do bobo, são inteiramente definidas pela relação com o plurilinguismo (com as  suas camadas superiores): o bufão é aquele que tem o direito de falar em linguagens não reconhecidas e de deturpar maldosamente as linguagens reconhecidas” (p. 196).

“O romance aprende a utilizar todas as linguagens, modos e gêneros, ele força todos os mundos ultrapassados e obsoletos, social e ideologicamente alienados e distantes a falarem de si mesmo na sua própria linguagem e com o seu próprio estilo, mas o autor sobreedifica em cima dessas linguagens as suas intenções e os seus acentos que se combinam dialogicamente com elas. O autor faz com que o seu pensamento se infiltre na representação da linguagem de outrem, sem violar a sua vontade e a sua originalidade próprias” (p. 199).

“[…] a linguagem parodiada opõe uma viva resistência dialógica às intenções alheias que a parodiam; […] a representação torna-se uma interação evidente e viva de mundos, de pontos de vista, de acentos difeerentes. Daí a possibilidade de uma reacentuação dessa representação […]” (p. 200).

“O romance não foi uma enciclopédia de linguagens, mas de gêneros” (p. 200).

“[…] o romance deve ser o microcosmo do plurilinguismo” (p. 201).

“Toda linguagem só se revela em sua originalidade quando quando é correlacionada a todas as outras linguagens integradas numa mesma unidade contraditória do devir social. No romance, toda linguagem é um ponto de vista, uma perspectiva sócio-ideológica dos grupos sociais reais e dos seus representantes personificados. Na medida em que a linguagem não for percebida enquanto perspectiva sócio-ideológica, ela não poderá ser o material para a orquestração, não poderá tornar-se uma representação da linguagem. Por outro lado, todo ponto de vista sobre o mundo, essencial (p. 201) para o romance, deve ser concreto, socialmente personificado, e não uma posição abstrata, puramente semântica e deve, por conseguinte, ter  sua própria linguagem, com a qual está organicamente unido. O romance não é construído nem sobre as divergências abstratamente semânticas nem sobre as colisões puramente temáticas, mas sobre um plurilinguismo social concreto” (p. 202).

“Somente no conjunto do plurilinguismo de uma época, as linguagens isoladas, seu papel e seu verdadeiro sentido histórico se revelam totalmente […]” (p. 202).

O “discurso romanesco da segunda linha estilística” […] se constitui quando foram criadas condições ideais para a interação e o esclarecimento mútuo das linguagens, para a passagem do plurilinguismo da sua ‘existência em si’ (quando as linguagens não se conhecem ou podem ignorar-se) a uma ‘existência para si’ (quando as linguagens do plurilinguismo se descobrem mutuamente e começam a servir de fundo dialógico umas às outras)” (p. 204).
“[…] ângulos de refração das […] intenções […] inter-relações dialógicas [...]” (p. 205).
“A penetação ideológico-literária no todo do romance deve dirigir sempre a sua análise estilística” (p. 206).
“Fora de uma compreensão profunda do plurilinguismo, do diálogo entre as linguagens de uma dada época, a análise  estilística  do romance não pode ser produtiva” (p. 206).
“A análise do estilo romanesco encontra um tipo particular de dificuldade, determinada pela velocidade do transcorrer de dois processos de transformação, à qual submete-setodo fenômeno linguístico”: o processo de canonização e o processo de reacentuação” (p. 207).
“Cada época reacentua a seu modo as obras de um passado recente. A vida histórica das obras clássicas é, em suma, um processo initerrupto da sua reacentuação sócio-ideológica” (p. 209).

1934-1935 (ano de produção do texto


Formas de tempo e de cronotopo no romance – ensaios de poética histórica

“Em literatura, o processo de assimilação do tempo, do espaço, e do indivíduo histórico real que se revela neles, tem fluído ccomplexo e intermitente” (p. 211)

“A interligação fundamental das relações temporais e espaciais, artisticamente assimiladas em literatura, chamaremos cronotopo (que significa ‘tempo-espaço’). Esse termo é empregado nas ciências matemáticas e foi introduzido e fundamentado com base na teoria de da relatividade (Einstein)” (p. 211).

“O cronotopo tem um significado fundamental para os gêneros na literatura. Pode-se dizer francamente que o gênero e as variedades de gênero são determinadas justamente pelo cronotopo, sendo que em literatura o princípio condutor do cronotopo é o tempo. O cronotopo como categoria conteudístico-formal determina (em medida significativa) também a imagem do indivíduo na literatura; essa imagem sempre é fundamentalmente cronotópica” (p. 212).

I – O romance grego

Já na Antiguidade foram criados três tipos fundamentais de unidade de romance e, por conseguinte, três métodos fundamentais de assimilação artística do tempo e do espaço no romance, ou, simplificando, três cronotopos do romance” (p. 213).

“[…] nova unidade específica de romance, cujo elemento constitutivo é o tempo do romance de aventuras” (p. 215).

“[…] o tempo de aventuras dos romances gregos está isento de qualquer  aaspecto  cíclico da natureza e dos costumes, o que implicaria uma ordem temporal e medidas humanas para esse tempo, e o ligaria aos momentos que se repetem da vida humana e natural” (p. 217).

“A unidade indissolúvel (mas não a fusão)  das definições temporais e espaciais traz ao cronotopo do encontro caráter elementar, preciso,, formal e quase matemático. Mas, naturalmente, esse é um caráter abstrato. Pois o motivo do encontro é impossível isoladamente: ele semre entra  como elemento constituinte da composição do enredo e da unidade concreta de toda a obra e, por conseguinte,  inclui-se no cronotopo concreto que o engloba […]” (p. 222).

“O encontro é um dos mais antigos acontecimentos formadores do enredo do epos (em particular do romance)” (p. 223).

“O motivo do encontro está estreitamente ligado a outros motivos […]” (p. 223).

“O motivo do encontro é um dos mais universais não só na literatura […], mas em outros campos da cultura, e também em diferentes esferas da vida e real  dos costumes da sociedade” (p. 223).

“O cronotopo real do encontro tem constantemente lugar nas organizações da vida social e nacional” (p. 223).

“O tempo de aventuras do tipo grego tem necessidade de uma extensividade espacial abstrata”. (p. 224).

“[…] o cronotopo de aventuras caracteriza-se pela ligação técnica e abstrata do espaço e do tempo, pela reversibilidade dos momentos da série temporal e pela sua possibilidade de transferência no espaço” (p. 225).

“O exotismo pressupõe uma intencional contraposição do estranho com o familiar, nele o insólito daquilo que é alheio é realçado, é saboreado e minuciosamente representado pelo que é subentendido, habitual, conhecido” (p. 225).

“Os motivos amorosos […] na poesia alexandrina foram elaborados principalmente num cronotopo idílico-pastoril” (p. 227).

“[…] momentos composicionais e trmáticos do romance grego […]” (p. 229).

“[…] romance de aventuras e de provações” (p. 230).

“O cronotopo do romance grego é um dos mais astratos dentre  os que sencontram nos grandes romances” (p. 233).

II – Apuleio e Petrônio

“[…] a idéia da metamorfose percorreu um caminho de evolução bastante complexo e ramificado. Uma das ramificações desse caminho é a filosofia grega, onde a ideia da transformação, paralelamente `a idéia de identidade, tem grande papel […]” (p. 255).

“Outra ramificação é o desenvolvimento religioso da idéia de metamorfose (transformação) nos mistérios antigos e principalmente nos mistérios elêusicos” (p. 235).

“A terceira ramificação representa a vida ulterior dos motivos da transformação no folclore popular” (p. 235).

“Com base na metamorfose é criado o tipo de representação de toda a vida humana em seus momentos essenciais de ruptura e de crise: como um homem se transforma em outros” (p. 237).

O ACASO INFLUENCIA MAS NÃO DETERMINA A CONSTRUÇÃO DE UMA IDENTIDADE (vide pág. 239).

“[…] os signos da estrada são os signos do destino, etc. Por isso, o cronotopo romanesco da estrada é tão concreto e circunscrito, tão impregnado de motivos folclóricos” (p. 242).

“O crime é aquele momento da vida privada onde ela se torna, por assim dizer, pública a contragosto. No restante essa é uma vida de segredos, de alcova […]” (p. 244).

“Nos modelos hagiográficos do tipo de aventuras e de costumes, o momento da metamorfose aparece em primeiro plano (vida de pecado-crise-redenção-santidade)” (p. 249).


III – Biografia e autobiografia antigas
As “formas clássicas de autobiografias e bografias não eram obras de caráter livresco, desligadas do acontecimento político, social e concreto, e da sua publicidade retumbante. […] eram atos verbais cívico-políticos, de glorificação ou de autojustificação públicas” (p. 251).

“O cronotopo real é a praça pública (a ágora)” (p. 251).

“A total extroversão é uma particularidade muito importante da figura do homem na arte e na literatura clássicas” (p. 252).

“[…] extroversão do homem público […]” (p. 253).

“[…] a reflexão como uma conversa consigo mesmo, no entender de Platão, não pressupões absolutamente qualquer relação particular consigo próprio (o que difere da relação com o outro) […]” (p. 253).

“[…] as Confissões de Santo Agostinho não podem ser lidas ‘em voz baixa’, é preciso declamá-las em voz alta, pois em sua forma ainda encontra-se vivo o espírito da praça grega, onde primeiro se formou a conscientização do homem europeu” (p. 254).

Diferenças entre a autobiografia romana e a grega (p. 256).

A categoria da felicidade (p. 257).

“[…] traço sustancial do tempo biográfico, sua objetivação” (p. 257-258).

“[…] formas autoiográficas antigas, que podem ser denominadas formas de tomada de consciência pública do homem” (p. 258).
“[…] traço sustancial do tempo biográfico, sua objetivação” (p. 257-258).

“[…] formas autoiográficas antigas, que podem ser denominadas formas de tomada de consciência pública do homem” (p. 258).

IV – O problema da inversão histórica e do cronotopo folclórico

“Onde não há a marcha do tempo, não há elementos do tempo no sentido pleno e essencial da palavra. A atualidade tomada fora da sua relação com o passado e o futuro, perde a unicidade, decompõe-se em fenômenos e coisas isoladas, torna-se um conglomerado abstrato” (p. 263).

“Nas estruturas filosóficas correspondentes à inversão histórica, a proclamação dos ‘princípios’ como fontes puras e não alteradas de toda a existência, e a proclamação dos valores eternos, das formas idealmente atemporais, estão em correspondência entre si” (p. 265).

“[…] o realismo folclórico é uma fonte inesgotável de realismo para toda a literatura livresca, inclusive o romance. Essa fonte de realismo teve significado especial na Idade Média e, em particular, na época do Renascimento […]” (p. 267).

V – O romance de cavalaria

“No romance de cavalaria, a aparência do acaso […] não é a mesma do romance grego” (p. 269).

VI – Funções do trapaceiro, do bufão e do bobo no romance

“[…] para o romance, o problema do autor surge não só no plano geral, como ocorre em outros gêneros, mas também no plano da forma e do gênero” (p. 277).

“Basicamente, o romance picaresco funciona segundo o cronotopo od romance de aventuras e e de costumes […]” (p. 279).


VII – O Cronotopo de Rabelais

“[…] o romance como entidade una, penetrada pela unidade de sua ideoloia e do seu método literário” (p. 282).

“[…] as particularidades do método literário de Rabelais, a originalidade do seu realismo fantástico” (p. 283).

“Entre as belas coisas deste mundo, estabelecidas e confirmadas pela tradição, e consagradas pela religião e pela ideologia oficial, há ligações falsas que alteram a sua natureza verdadeira. As coisas e as idéias estão unidas por meio de relações hierárquicas falsas, hostis à natureza delas, estão separadas e distantes umas das outras por diversas camadas  intermediárias de um ideal de outro mundo, que não as deixam entrar em contato vivo e carnal” (p. 284).

“A elaboração das séries é uma particularidade específica do método literário de Rabelais” (p. 285).

“Por isso Rabelais opõe o aspecto carnal do homem (e o mundo circundante na zona de contato com o corpo) não só à ideologia medieval ascética do além, mas também à prática medieval licenciosa e grosseira. Ele quer devolver ao corpo a palavra e ao sentido a sua realidade e materialidade” (p. 285).

“[…] na base dessa lógica rabelaisiana grotesca, encontra-se a lógica do realismo fantástico e folclórico” (p. 289).

“[…] palavras e conceitos, que a fala dos homens, baseada numa ordem determinada, numa visão de mundo e num sistema de valores precisos, nunca emprega num mesmo contexto, num mesmo gênero, estilo e frase, e com a mesma entonação” (p. 291).

“Rabelais não é absolutamente um pregador da glutonaria e da bebedeira vulgares. Mas ele salienta o significado elevado da comida e da bebida para a vida humana, procura dar-lhes uma consagração ideológica, uma ordenação, uma cultura. A concepção ascética do além negava o valor positivo delas, admitia-as somente como uma triste necessidade da carne pecaminosa e conhecia só uma forma de discipliná-las: o jejum, forma negativa e hostil a sua natureza, ditada não pelo amor, mas pelo ódio […]” (p. 298).

“O ‘pantagruelismo’ é a arte de ser alegre, sábio e bom. Por isso, o saber festejar de forma alegre e sábia constitui a própria essência do pantagruelismo. Mas as festas dos pantagruelistas não são de modo algum, banquetes de vadios e glutões que a vida toda fazem patuscadas. Apenas o repouso vespertino, depois do dia de trabalho deve ser consagrado ao banquete”. (p. 299).

“[…] os salmos de Davi se encontram  aqui estritamente ligados aos processos da comida, da bebida, e do ato de urinar” (p. 301).

“Em Rabelais, a ‘morte alegre’ não só coincide com o preço elevado da vida e com a exigência de lutas por essa vida até o fim, ela é justamente a expressão desse alto preço, a expressão da força da vida que eternamente triunfa sobre qualquer morte. Na imagem rabelaisiana da morte alegre, não há nada de decadente, nenuma aspiração da morte […]. Para Rabelais, na elaboração desse tema, aspecto anatômico-fisiológico, racional e claro da morte tem enorme importância, Também o riso não e encontra absolutamente justaposto ao horror da morte: um horror deste tipo não existe, e não há, consequentemente, nenhum contraste violento” (p. 310).

“A morte não começa nem termina nada de essencial no mundo coletivo e histórico da vida humana” (p. 315).

“O problema de Rabelais é reunir o mundo que se desagrega (como resultado da decomposição da visão do mundo medieval) sobre uma nova base material. […] Era preciso contrapor ao escatologismo um tempo produtivamente fértil, um tempo medido pela construção, pelo crescimento, e não pela destruição. Os fundamentos deste tempo construtivo apareciam delineados nas imagens e nos temas do folclore”.

VIII – Fundamentos folclóricos do cronotopo de Rabelais

“As formas básicas do tempo produtivo e fecunndo remontam ao estágio agrícola primitivo do desenvolvimento da sociedade humana” (p. 317).

“[…] tempo é profundamente espacial e concreto” (p. 318).

“Na época do capitalismo desenvolvido, a vida sócio-estatal torna-se abstrata e quase sem temas” (p. 319).

“À medida que o corpo social se divide em classes sociais, o complexo sofre importantes modificações, e os motivos e temas correspondentes passam por reinterpretações. Ocorre a diferenciação gradual das esferas ideológicas” (p. 321).

“O reflexo ideológico (a palavra a representação) adquire um poder mágico. Um objeto isolado transforma-se no substituto do todo […]” (p. 322).

“A ideologia reflete o que já foi rompido e desunido na própria vida” (p. 323).

IX – O cronotopo idílico no romance

“O homem positivo do mundo idílico torna-se cômico, lamentável e supérfluo, ou ele perece, ou transforma-se num abutre egoísta” (p. 341).

“De todos os elementos do complexo antigo só o riso nunca foi sublimado, nem pela religião nem pelo misticismo ou pela filosofia. Jamais ele teve um caráter oficial e mesmo na literatura, os gêneros cômicos sempre foram os mais livres, os menos regulamentados” (p. 342).

“Assim, todos os gêneros elevados e sérios, todas as formas nobres de linguagem e de estilo, todas as combinações diretas de palavras, todas os padrões de linguagem, foram impregnados pela mentira, por convenções perniciosas, pela hipocrisia e pela falsidade. Somente o riso não foi contaminado” (p. 343).

“A língua, na sua totalidade, pode ser empregada num sentido impessoal. Em todos esses casos, o próprio ponto de vista incluído na fala, a modalidade da língua e a sua própria relação com o objeto e com o falante são submetidos à reinterpretação. Ocorre aqui uma transferência dos planos da linguagem, a aproximação do que não se combinava, a queda do que se associava […]. Tem lugar continuamente uma extrapolação dos limites das relações intralinguísticas, e o mesmo se pressupõe para os limites do conjunto verbal fechado […] (p. 343).

“Assim, a transformação e o aprimoramento do homem individual não estão separados do crescimento histórico e do progresso cultural. […]. Tudo o que existe no homem se exprime pela ação e pelo diálogo” (p. 345).

“O grande homem de Rabelais, que cresceu sobre uma base folclórica, é rande não pelas suas diferenças das outras pessoas, mas pela sua humanidade,, ele é rande pela plenitude da descoberta e e realização de todas as possibilidades humanas, e ele é grande no mundo espaço-temporal verdadeiro […]. O bufão popular se apresenta  nessa imagem bem mais vivo e corporificado […]” (p. 347).

“A planta maravilhosa – pantagruelin – é a “erva-explosão” do folclore mundial” (p. 348).

X – Observações finais

“O cronotopo determina a unidade artística de uma obra literária no que ela  diz respeito à realidade efetiva. […] Em arte e em literatura, todas definições espaço-temporais são inseparáveis umas das outras e são sempre tingidas de um matiz emocional” (p. 349).

“[…] valores crontópicos de diferentes níveis e volumes” (p. 349).

“Todos os oelementos abstratos do romance – as generalizações filosóficas e sociais, as idéias, as análises das causas e dos efeitos, etc. – gravitam ao redor do cronotopo, graças ao qual se enchem de carne e de sangue, se iniciam no caráter imagístico da arte literária” (p. 356).

“[…] toda imagem de arte literária é cronotópica. A linguagem é essencialmente cronotópica, como tesouro de imagens. É cronotópica a forma interna da palavra, ou seja, o signo mediador que ajuda a transportar os significados originais e espaciais para as relações temporais (no sentido mais amplo)” (p. 356).

“O princípio da cronotopia da imagem artístico-literária foi descoberto pela primeira vez, com toda clareza, por lessing no seu Laocoonte” (p. 356).

“[…] cada um [dos] cronotopos [grandes] pode incluir em si uma quantidade ilimitada de pequenos crontopos: pois cada tema possui o seu próprio cronotopo […]” (p. 357).

“Nos limites de uma única obra e da criação de um único autor, observamos uma grande quantidade de cronotopos e as suas interrelações complexas e específicas da obra e do autor, sendo que um deles é frequentemente englobador ou dominante. […]. Os cronotopos podem se incorporar um ao outro, coexistir, se entrelaçar, permutar, confrontar-se, se opor ou se encontrar nas inter-relações mais complexas. Estas inter-relações entre os cronotopos já não podem surgir em nenhum dos cronotopos isolados que se inter-relacionam. O seu caráter é dialógico (na concepção ampla do termo). Mas esse diálogo não pode penetrar no mundo representado na obra nem em nenhuma dos seus cronotopos: ele está fora do mundo representado, embora não esteja fora da obra no seu todo. Esse diálogo ingressa no mundo do autor, do intérprete e no mundo dos ouvintes e dos leitores. E esses mundos também são cronotópicos” (p. 357).

“O texto como tal não é inerte” (p. 357).
“Apesar de toda inseparabilidade dos mundos representado e representante, apesar da irrevogável presença da fronteira rigorosa que os separa, eles estão indissoluvelmente ligados um ao outro e se encontram em constante interação […]” (p. 358).

“A relação do autor com as diferentes manifestações literárias e culturais assume um caráter dialógico, análogo às inter-relações entre os cronotopos do interior da obra […]. Mas estas relações dialógicas entram numa esfera semântica particular que extrapola os quadros da nossa análise puramente cronotópica” (p. 360).

“O mundo representado, mesmo que seja realista e verídico, nunca pode ser cronotopicamente identificado com o mundo real representante, onde se encontra o autor-criador dessa imagem” (p. 360).

“[…] toda imagem é sempre algo criado, não criador” (p. 361).

“[…] interpretação compreende também um elemento de apreciação” (p. 361).

“[…] qualquer intervenção na esfera dos significados só se realiza através da porta dos cronotopos” (p. 362).

Da Pré-história do discurso romanesco

“O clacissismo dos séculos XVII e XVIII não considerava o romance como um gênero poético independente, e o relacionava aos gêneros retóricos mistos” (p. 363).

“[…] entonação paródico-irônica” (p. 366).

“[…] complexas representações internamente dialogizadas das linguagens” (p. 368).

“[…] não existe uma linguagem e estilo únicos no romance. Ao mesmo tempo, há um centro linguístico verbal-ideológico do romance” (p. 370).

“A linguagem literária é apresentada no romance não como uma linguagem única, inteiramente acabada e indiscutível, ela é apresentada justamente na sua contradição expressiva, no seu devir e em sua renovação” (p. 370).

“A língua do romance não só representa, mas ela própria é objeto de representação. A palavra romanesca é sempre autocrítica” (p. 371).

“As representações específicas das linguagens e dos estilos, sua organização, sua tipologia (elas são muito heterogêneas), a combinação das linguagens no romance, todas as transformações e comutações das linguagens e das vozes, suas inter-relações dialógicas, tais são os problemas fundamentais da estilística do romance” (p. 371).

“[…] somente no romance o discurso pode revelar todos os seus recursos específicos e alcançar sua autêntica profundidade. Mas o romance é um gênero relativamente tardio. Entretanto, a palavra indireta, isto é, a palavra do outro que é representada, a linguagem de outrem colocada entre aspas de entonação, remonta a tempos bastante antigos; […] nos estágios iniciais da cultura verbal” (p. 371).

“A palavra romanesca teve uma longa pré-história […]. Ela se formou e amadureceu nos gêneros do discurso familiar ainda pouco estudados da , da linguagem popular falada, e do mesmo modo em alguns gêneros literários e folclóricos inferiores. […] se desenvolveu nos limites das culturas e das línguas” (p. 371).

“O riso organizou as mais antigas formas de representação da linguagem […] O plurilinguismo e, ligado a ele, o esclarecimento recíproco das linguagens elevaram estas formas para um nível artístico-ideolóico novo, sobre o qual o gênero romanesco se tornou, possível” (p. 372).

“[…] não havia literalmente nem um só gênero direto estrito, nem um só tipo de discurso direto – literário, retórico, filosófico, religioso, popular – que não tivesse o seu duplo paródico-travestizante, sua contra-partie cômico-hirônica. Ademais, estes duplos paródicos e os reflexos cômicos do discurso direto em alguns casos eram tão consagrados e canonizados pela tradição quanto os seus propósitos elevados” (p. 373).

“A criação paródico-travestizante introduz um corretivo constante de riso e de crítica na seriedade exclusiva do discurso direto elevado, corretivo da realidade, que é sempre mais rica, mais substancial, e principalmente, mais contraditória e multilíngue do que pode conter o gênero direto elevado. Os gêneros elevados são monótonos, o ‘quarto drama’ e os gêneros aparentados sustentam a antiga dualidade da palavra. A paródia antiga não conhece a negação niilista” (p. 375).

“[…] todo unilinguismo é, em suma, relativo; pois nossa própria língua não é única: nela sempre há vestígios e potencialidades de outras línguas, percebidos de maneira mais ou menos aguda pela consciência criativa literária e linguística” (p. 383).

“[…] processos de estratificação e diferenciação linguística” (p. 383).

“As fronteiras entre o seu próprio discurso e o de outrem eram frágeis e ambíguas, frequentemente tortuosas e propositadamente confusas” (p. 385).

“A paródia definhou, o seu luar na nova literatura é mínimo. Vivemos, escrevemos e falamos no mundo da linguagem livre e democratizada. A antiga hierarquia das palavras, complexa e fortemente graduada, as formas, imagens e estilos, que impregnaram todo o sistema da linguagem oficial e da consciência linguística, foram varridos pela revolução linguística da época renascentista” (p. 386).

“[…] o papel da paródia na Idade Média foi vital, pois ela preparou a nova consciência linguística e literária, preparou o grande romance da Renascença” (p. 387).

“[…] são frágeis os limites entre a palavra direta e a palavra parodicamente refrangente, na literatura medieval” (p. 388).

“O riso das festividades  (p. e das recreações era um riso totalmente legítimo” (p. 388).

“[…] a paródia é na realidade um fenômeno bilíngue: ainda que uma língua única, ela é construída e expressa à luz de outra língua; algumas vezes não só os acentos, mas mesmo as formas sintáticas dessa língua vulgar são claramente sentidos na paródia latina. A paródia latina  é um híbrido premeditado. Chegamos então ao problema do híbrido premeditado” (p. 389).

Toda paródia, travestimento, ou discurso, empregado de maneira restritiva, irônica, colocado entre aspas (de entonação) e, em geral, todo discurso indireto, é um híbrido premeditado, mas unilíngue, dentro da ordem do estilo. De fato, no discurso paródico convergem e cruzam-se, de certo modo, dois estilos, duas ‘linguagens’ (interlinguísticas): a linguagem parodiada, por exemplo, a linguagem de um poema heróico, e a linguagem que parodia – a linguagem prosaica vulgar, a linguagem falada familiar, a linguagem dos gêneros realistas, a linguagem ‘normal’, a linguagem literária ‘saudável’, tal como imagina o autor da paródia. Esta segunda linguagem que parodia, no fundo da qual se constrói e se expressa a paródia, não participa diretamente dessa mesma paródia – rigorosamente falando – mas está presente de modo invisível” (p. 389-390).

“[…] qualquer paródia desloca os acentos do estilo que é parodiado, condensando certos elementos e deixando outros à sombra: a paródia é parcial, a sua parcialidade é ditada pelas particularidades da linguagem paródica, pelo sistema de pronúncia, por sua estrutura […]” (p. 390).

“[…] duas linguagens se cruzam na paródia, dois estilo, dois pontos de vista, dois pensamentos linguísticos e, em suma, dois sujeitos do discurso. […]. A paródia é um híbrido premeditado, mas é um híbrido habitualmente interlinguístico, que se nutre por conta da estratificação da linguagem literária em linguagens de orientação e de gênero” (p. 390).

“Todo híbrido estilístico intencional é, em certa medida, dialogizado. Isto significa que as linguagens, que nele se cruzam, estão relacionadas umas com as outras, como réplicas de um diálogo; trata-se de uma luta entre linguagens e entre estilos de linguagens. Porém, não se trata de um diálogo do sujeito, nem de uma abstração semântica e sim do diálogo entre dois pontos de vista linguísticos que não podem se traduzir reciprocamente” (p. 390).

“[…] toda paródia é um híbrido dialogizado e premeditado. Nela, as linguagens e os estilos se esclarecem reciprocamente” (p. 390).

“[…] todo o restante da literatura latina apresenta-se, na realidade, como um grande híbrido complexo e dialogizado” (p. 391).

“O a
Claramento mútuo das línguas no processo de liquidação do bilinguismo alcançou seu ponto culminante na Renascença” (p. 393).

“O riso e o multilinguismo preparam o discurso romanesco dos tempos modernos” (p. 395).

“A pré-história do discurso romanesco não se insere nos limites estreitos da história dos estilos literários” (p. 396).

Epos e romance
O romance é o “único gênero que ainda está evoluindo no meio de gêneros já há muito formados e parcialmente mortos” (p. 398).

“Sobre o problema do romance, a teoria dos gêneros encontra-se em face de uma reformulação radical” (p. 401).

“À diferença dos outros grandes gêneros, o romance se formou e se desenvolveu precisamdente nas condições de uma ativação aguçada do plurilinguísmo exterior e interior” (p. 405).

“O discurso épico, por seu estilo, tom e caráter imagético, está infinitamente longe do discurso de um contemporâneo que fala sobre um contemporâneo aos seus contemporâneos” (p. 405).

“A memória, e não o conhecimento, é a principal faculdade criadora e a força da literatura antiga” (p. 407).

“A conclusão absoluta e o seu caráter acabado – eis os traços essenciais do passado épico, axiolóico e temporal” (p. 408).

“[…] o discurso é inseparável de seu objeto, pois para a sua semântica é característica a absoluta junção dos elementos espaço-temporais com os axiológicos (hierárquicos)” (p. 409).

“O mundo épico está construído numa zona de representação longínqua, absoluta, fora da esfera do possível contato com o presente em devir, que é inacabado e por isso mesmo sujeito a reinterpretação e a reavaliação” (p. 409).

“A atualidade enquanto tal não é admissível como objeto de representação para nenhum gênero elevado. A vida atual pode penetrar nos gêneros elevados somente nos seus níveis hierárquicos superiores, já distanciados pela sua colocação na própria atualidade” (p. 409).

“[…] o passado absoluto não é aquele no nosso sentido limitado e preciso da palavra, mas uma certa categoria axiológica, temporal e hierárquica” (p. 410).

“Não se pode ser ‘grande’ no seu tempo. […] a atualidade (que não virá a ser memória) é comemorada em argila, e aquela que visa o futuro (a posteridade) é comemorada em mármore e bronze” (p. 410).

“É justamente o riso que destrói a distância épica e, em geral, qualquer hierarquia de afastamento axiológico” (p. 413).   

“[…] quando o presente se torna o centro da orientação humana no tempo e no mundo, o tempo e o mundo perdem o seu caráter acabado, tanto no seu todo, como também em cada parte. O modelo temporal do mundo modifica-se radicalmente: este se torna um mundo onde não existe a palavra primordial (a origem perfeita), e ondde a última ainda não foi dita” (p. 419).

“O homem não se encarna totalmente na substância sócio-histórica do seu tempo” (p. 425).

“O presente, com seu caráter inacabado, considerado como ponto de partida e centro de orientação literário-ideológica, marca uma revolução grandiosa na consciência criadora do homem” (p. 426).

“[…] a romancização dos outros gêneros não implica a sua submissão a cânones estranhos […]” (p. 427).

“O processo de evolução do romance não está concluído” (p. 428).

Rabelais e Gógol (Arte do discurso e cultura cômica popular)

“Rabelais é o herdeiro e o realizador de um riso popular milenar. Sua obra é a chave insubstituível para toda a cultura cômica européia nas suas manifestações mais vigorosas, profundas e originais” (p. 429).

“[…] travestimento cômico de uma palavra que revela sua natureza multiforme e mostra o caminho de sua renovação” (p. 437).

“Não há pontos de vista da seriedade em oposição ao riso. O riso é ‘o único personagem positivo’” (p. 438).

“O satírico que ri não é alegre. NO fim, ele e carrancudo e sombrio. Mas o riso de Gógol é vitorioso em tudo. De fato, ele criou o seu próprio gênero de catarse da trivialidade” (p. 439).

“O problema do riso em Gógol só pode se corretamente colocado e resolvido com base no estudo da cultura cômica popular” (p. 439).


BAKHTIN, Mikhail. Questões de literatura e de estética: a teoria do romance. Trad. Aurora Fornoni Bernardini et al. 7 ed. São Paulo. Hucitec. 2014. 439 p. {Linguagem e cultura, 18}.




VOCABULÁRIO RUSSO:

Slovo: palavra, verbo, discurso
Iazík: língua, linguagem
Górod: cidade (grad: cidade – termo eslavoeclesiástico). (p. 53).
Tchujoi: outrem (literalmente), alheio ou estrangeiro (p. 85).
Rasnoriétchie (discurso(s) direto(s) [forma concreta]): pluridiscurso (p. 107).
Rasnorietchívost (forma abstrata): pluridiscursividade (p. 107).
Rasnoiazítchie ([conjunto de] língua[s] diferente[s]) (p. 107).
Priedmiétnii: objetal (objeto, coisa)
Ob’iétnii: objetivo (concreto, consistente)
Literaturnost: Literaturidade (p. 176).
Adnovríemiénnost: concomitância (coincidência) (p. 219)
Raznovriemiénnost: não concomitância (contratempo) (p. 219).
Obraz: imagem, representação (p. 368).
Tchastúchka: poesia russa de melodia igual e temas diversos (p. 406).
Tchin: graus (p. 437).


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