domingo, 6 de fevereiro de 2011

CENOGRAFIAS, ESTEREÓTIPOS E DISCURSO RELIGIOSO Edvania Gomes da Silva (Uesb)

Universidade Estadual de Maringá – UEM
Maringá-PR, 9, 10 e 11 de junho de 2010 – ANAIS - ISSN 2177-6350
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CENOGRAFIAS, ESTEREÓTIPOS E DISCURSO RELIGIOSO
Edvania Gomes da Silva (Uesb)

Sobre a noção de cenografia

De acordo com Maingueneau, o enunciador não é um ponto de origem estável que se expressaria dessa ou daquela maneira, ele está inserido em uma determinada cena enunciativa e é a partir desse “lugar” que o fiador assume um certo modo de enunciação. Nesse sentido, para além do ethos, que diz respeito à imagem do enunciador, caberia ao analista verificar a constituição desse modo de enunciação que, juntamente com a imagem do fiador do discurso, constituem aquilo a que Maingueneau chama quadro cênico.
A cena de enunciação integra três cenas: a englobante, a genérica e a cenografia. Juntas, elas compõem um quadro dinâmico que torna possível a enunciação de um determinado discurso. Segundo Maingueneau (2005, p. 77), há, nesse diálogo entre cenas, o estabelecimento de uma relação paradoxal, pois, “desde sua emergência, a fala supõe uma certa cena de enunciação que, de fato, se valida progressivamente por essa mesma enunciação”. Ou seja, ao enunciar, o fiador institui uma cena e é essa cena que vai validar sua própria enunciação.
Para além da cena englobante e da cena genérica, que, segundo Maingueneau, compõem o quadro cênico de um texto, o que mais interessará na análise aqui empreendida será o estudo da cenografia. A cenografia pode ser definida como “um correlato da própria enunciação, pois é esta última que, ao se desenvolver, esforça-se por constituir progressivamente o seu próprio dispositivo de fala” (MAINGUENEAU, 2004, p. 87). Ela leva o quadro cênico (cena englobante e cena genérica) a se deslocar para um segundo plano, pois quando um texto apresenta uma cenografia, é por meio dela que esse texto se mostra ou se dá a conhecer a seu co-enunciador. Isso ocorre porque “qualquer discurso, por seu próprio desdobramento, pretende instituir a situação que o torna pertinente” (MAINGUENEAU, 2005, p. 75). Ainda segundo Maingueneau (2005), o termo cenografia não corresponde apenas à idéia de “teatro” ou de


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“encenação”. À noção teatral de “cena” o autor acrescente a de - grafia, de inscrição. Isso porque, segundo ele, “uma enunciação se caracteriza, de fato, por sua maneira específica de inscrever-se, de legitimar-se, prescrevendo um modo de existência no interdiscurso” (MAINGUENEAU, 2005, p. 77). Nesse sentido, a enunciação instaura seu próprio dispositivo de fala. Por isso, “a -grafia deve ser apreendida, ao mesmo tempo, como quadro e como processo” (MAINGUENEAU, 2005, p. 77). Para analisar a cenografia de um texto faz-se necessário, portanto, considerar, em alguma medida, a dinamicidade da enunciação, afinal, não se trata de um quadro estático, mas de um processo no qual entram em cena fatores tanto da ordem do enunciado quanto da ordem da enunciação.

2. Sobre a noção de estereótipo

No que diz respeito ao conceito de estereótipo, Amossy e Pierrot (2005) mostram que se trata de uma noção que interessa a diferentes disciplinas, cada uma das quais constrói seu objeto em função de sua lógica própria e, como não poderia deixar de ser, de seus interesses. Nesse sentido, o estereótipo surge como um objeto transversal da reflexão contemporânea nas ciências humanas.
O termo “estereótipo” surge relacionado ao campo da tipografia e diz respeito a algo que é “impresso com placas cujos caracteres não são móveis, e que se conservam para novas tiragens” (Larousse, 1875 apud. AMOSSY & PIERROT, 2005, p. 30). A palavra estereotipia liga-se, portanto, à idéia de rigidez, pois supõe algo que não se modifica, que é fixo, cristalizado. O estereótipo no sentido de esquema ou de fórmula cristalizada aparece no século XX e se converte em um centro de interesse para as ciências sociais desde os anos 20 do referido século1

1 O primeiro autor a utilizar o termo estereótipo no seu sentido atual foi o americano Walter Lippmann. Para Lippmann, os estereótipos são imagens da nossa mente que mediatizam nossa relação com o real. Nesse sentido, a estereotipia é concebida pelo referido autor como um fenômeno intrínseco à vida em sociedade, pois, “na confusão brilhante, ruidosa do mundo exterior, pegamos o que nossa cultura já definiu para nós, e tendemos a perceber aquilo que captamos na forma estereotipada para nós por nossa cultura” (LIPPMANN, 2008, p. 85). .


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Neste artigo, procuro relacionar a noção de estereótipo às pesquisas que estão, em alguma medida, ligadas à Análise de Discurso Francesa (doravante AD), afinal a proposta do trabalho é relacionar estereótipo e cenografia, noção que, como vimos, provém dos trabalhos de Dominique Maingueneau, autor que se insere no campo da AD. Segundo Amossy e Pierrot (2005, p. 112), “a análise de discurso na França, surgida em fins dos anos sessenta, se interessou pouco pela estereotipia, mas instaurou um marco favorável ao seu estudo”. Para as autoras, a primeira aproximação possível entre estereótipo e AD está relacionada à noção de pré-construído. Nos próximos parágrafos, analisarei mais detidamente a referida noção.
De acordo com Henry (1990, p. 99), efeito de pré-construído (ou encaixe) é o termo utilizado para “designar o que remete a uma construção anterior e exterior, mas sempre independente, em oposição ao que é ‘construído’ pelo enunciado”. Trata-se, ainda segundo o autor, do efeito discursivo ligado ao encaixe sintático. Esse é um dos principais pontos de articulação entre Teoria do Discurso e Lingüística, pois mostra que existe uma relação intrínseca entre aquilo a que Pêcheux (1997) chama de base lingüística e os diferentes processos discursivos. Trata-se, ainda segundo Pêcheux (1997), da relação de discrepância entre domínios de pensamentos diferentes: um anterior (já pensado antes, desde sempre) e um realizado na situação de enunciação.
Segundo Amossy e Pierrot, o estereótipo se relaciona duplamente com o pré-construído:

/.../ no sentido de que designa um tipo de construção sintática que põe em jogo o pré-afirmado, e, em um sentido mais amplo, de que o pré-construído funciona como uma marca, em um enunciado individual, de discursos e juízos prévios, cuja origem foi apagada (2005, p. 113).

Em outras palavras, a noção de estereótipo liga-se, em alguma medida, ao conceito de memória discursiva, pois supõe a existência de algo que antecede e fundamenta a emergência dos enunciados.
Vale salientar, para concluir este tópico, que a relação aqui estabelecida entre pré-construído e estereótipo não considera o sujeito pragmático, tal qual definido nos trabalhos da psicologia social, que estão muito próximos das teorias cognitivistas e/ou

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sócio-cognitivistas. Trata-se, ao contrário, do sujeito da AD, um sujeito que se define como posição, como função vazia, como assujeitado e, portanto, impossibilitado de decidir a quais estereótipos irá ou não se filiar. Trata-se, portanto, assim como ocorre no caso do pré-construído, de uma questão de lugar de subjetivação e não de uma escolha individual2

3. Análise dos dados

Analisarei, aqui, duas capas de revista relacionadas ao campo religioso. Na análise, busco verificar em que medida as cenografias instauradas nas/por estas materialidades retomam e reatualizam alguns estereótipos socialmente construídos.

3.1. Análise da capa da revista Eclésia

A primeira capa aqui analisada é a da revista Eclésia, ano 11, edição nº. 121. 3
Inicialmente, acima do nome da revista, há o resumo de três reportagens, quais sejam: “Capoeira: a união entre berimbau e bíblia”; “Evangelismo: crentes proibidos de pregar nos trens” e “site pornô CRISTÃO? Psicóloga fala sobre o Sexxx Church”. A capa, em preto, traz, ao fundo, a imagem de bonecos de mãos dadas: à esquerda, há dois bonecos de saia; e, à direita, dois de calça; entre essas duas imagens, há o desenho de uma bíblia preta, com o nome “A Bíblia Sagrada”, grafado em letras douradas. Por cima dessas imagens, lemos a palavra “CENSURADO”, grafada em caixa alta e em cor branca. Da forma como está disposta, a expressão censurado parece ter sido carimbada na capa. Abaixo da imagem, há uma frase interrogativa, grafada em fonte preenchida na cor vermelha: “Perseguição religiosa no Brasil?”. Em seguida, há a seguinte formulação, grafada em letras menores que a primeira e em fonte preenchida na cor branca: “Evangélicos denunciam Lei da Homofobia e dizem que será o fim da liberdade de expressão no país”.


2 Dizer isso é também diferente de dizer que se trata de uma questão apenas social e/ou cultural.
3 Como não consegui o termo de cessão de direitos do autor da imagem, não posso apresentar aqui as capas analisadas. Entretanto, farei uma descrição minuciosa de ambas, a fim de tentar minimizar o problema.
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Deter-me-ei aqui na análise da chamada principal da revista. Como mostra a descrição acima, a cenografia instaurada é a de um documento que, a exemplo do que ocorria no caso da ditadura militar dos anos 60, foi censurado. O preto e o vermelho, cores que aparecem em destaque na capa, bem como o “carimbo”, com a palavra censurado, não deixam dúvidas quanto à forma de inscrição da referida chamada. Nesse sentido, a revista reatualiza, em sua manchete principal, a memória da censura e, ao inscrever-se por meio dessa memória, faz referência a um estereótipo, isto é, a uma imagem cristalizada, segundo a qual, a censura é algo negativo, e, portanto, os responsáveis por qualquer ato de censura devem ser rechaçados. Além do carimbo com a palavra censura, há outros dois indícios que apontam para esse efeito de sentido: a) a expressão “perseguição religiosa”, que funciona como uma espécie de fórmula e que traz a memória fatos como a Inquisição e o Holocausto; e b) o verbo “denunciar”, presente na formulação: “Evangélicos denunciam Lei da Homofobia e dizem que será o fim da liberdade de expressão no país”, pois o referido verbo cria um efeito de pré-construído segundo o qual há algo errado na Lei da Homofobia e, por isso, ela precisa ser denunciada.

Esses indícios mostram que o enunciador materializado na/pela capa assume a imagem da vítima: vítima da censura e da perseguição. Esse mesmo enunciador, identificado no texto pela expressão “Evangélicos”, denuncia a perseguição que sofrerá caso seja aprovada a “Lei da Homofobia”. Vê-se, nesse caso, um jogo discursivo bastante interessante: o enunciador evangélico, que, devido a um estereótipo socialmente construído, é acusado de homofobia e de desrespeitar os direitos dos homossexuais, assume o papel de vítima, isto é, daquele que é censurado e que não tem o direito de expressar “sua opinião”. Isso só é possível devido a relação entre a construção de uma certa cenografia e a evocação de uma imagem cristalizada, segundo a qual qualquer tipo de censura é vista como perseguição e, portanto, como algo negativo. Vê-se, portanto, que o enunciador evangélico não desconstrói o estereótipo que instaura a relação entre perseguidor e vítima, até porque isso seria muito difícil, uma vez que se trata de uma imagem cristalizada; ele o reconfigura, por meio da criação de uma cenografia específica e, dessa forma, inverte a relação, mostrando-se não mais como perseguidor, mas como perseguido.

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3.2. Análise da capa da revista Canção Nova

A segunda capa que analisarei é a da revista Canção Nova, edição nº.92, de agosto de 2008. A referida revista é uma publicação da Comunidade Canção Nova, ligada ao movimento da Renovação Carismática Católica.
Na parte superior da capa, há o nome do periódico e as informações sobre ano, número e data. Ainda na parte superior, do lado esquerdo, encontra-se impresso o símbolo da Canção Nova (um coração partido ao meio e uma pomba, cujas asas assemelham-se a uma mão). Logo abaixo, há a imagem de duas mãos, que saem da margem esquerda da página e estão envoltas em uma espécie de luz. As mãos seguram uma criança recém nascida com o rosto voltado para o leitor da revista. O bebê dorme com a mão direita embaixo do queixo e tem uma feição de tranquilidade. Na parte inferior da capa, do lado esquerdo, temos a seguinte formulação lingüística: “A Igreja em defesa da VIDA”. A palavra vida aparece grafada em caixa alta e, por isso, destaca-se das demais.
A imagem das mãos que seguram a criança, apresentada em destaque, no centro da capa e sobre um fundo escuro (em tons de azul marinho e preto), traz à memória a imagem da mão de Deus, que, segundo o relato bíblico, criou o homem à sua imagem e semelhança. Há uma relação também entre o nome da revista, apresentado na parte superior, a imagem das mãos que seguram a criança, e a expressão referencial definida “a Igreja”. Tanto a imagem central, quanto a expressão “a Igreja” remetem o leitor ao universo da religiosidade cristã, o que mostra a relação da Canção Nova com o campo religioso. A palavra vida, grafada em caixa alta, relaciona-se com a imagem central, que, por sua vez, limita o campo de interpretação do referido vocábulo. Em outras palavras, a imagem mostra qual é a vida que se deve defender. O jogo entre a imagem e a formulação central, “A Igreja em defesa da VIDA”, materializa um discurso segundo o qual Deus é o doador da vida e, por isso, é papel da Igreja defendê-la. A expressão “em defesa” cria o pré-construído segundo o qual a vida encontra-se ameaçada. Como a vida apresentada é a vida de um recém-nascido, remete-se à questão do aborto e da posição da Igreja em relação a esse assunto.

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Nesse caso, a cenografia criada é a de uma doação, um presente: é como se a mão estendida em direção ao leitor estivesse entregando a este o bebê que segura. Nesse sentido, o enunciador do texto não-verbal coloca na “mão” de seu co-enunciador (no caso, todos os que incorporam o discurso materializado pelo enunciado em questão) a vida da criança da imagem, criança essa que representa todas as que, segundo esse mesmo discurso, são “vítimas” de aborto. Assim como no caso da capa da revista Eclésia, verificamos aqui a presença de um estereótipo que sustenta a construção da referida cenografia: trata-se da “ideia” cristalizada de que as crianças são seres indefesos e que precisam da proteção dos adultos. Nesse caso, a criança é apresentada como vítima e o adulto como algoz, mas também como possível defensor, já que só ele pode impedir a efetivação do crime de aborto. Além disso, vê-se a reafirmação de um discurso segundo o qual Deus, representado na capa da revista pela mão que “entrega” a criança (o que retoma uma outra imagem cristalizada: a da mão poderosa de Deus conduzindo todas as coisas), é aquele que cuida e que protege seus filhos, principalmente os mais indefesos. Nesse caso, é a Igreja, como representante de Deus, que defende a vida das crianças.
As análises mostraram que, nas duas capas, as diferentes cenografias estão, em alguma medida, relacionadas a discursos que já circulavam de forma cristalizada na sociedade. Em outras palavras, para retomar uma tese clássica da AD, o novo (as diferentes cenografias) mantém sempre uma relação com um já dito, que permanece e que permite ao co-enunciador identificar-se a certa imagem de enunciador e, consequentemente, a certos discursos. Tais discursos estão relacionados a estereótipos, ou, se preferirmos, a imagens cristalizadas, como a de que a censura é uma atitude negativa e a de que a criança é um ser indefeso.
Entretanto, tal análise só é possível se levarmos em consideração a relação entre estereótipo e pré-construído, pois, nas duas capas analisadas, os estereótipos podem ser considerados como uma espécie de pré-construído, ou seja, como algo que remete a uma construção anterior e exterior. Por outro lado, se considerarmos a noção de estereótipo conforme explicitada por certas vertentes da psicologia social que, segundo Amossy e Pierrot (2005, p. 32), “insistiram em atribuir à noção de estereótipo um caráter redutor e nocivo”, como se esses fossem, em si, preconceituosos, negativos e
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equivocados, não será possível enxergar a presença de estereótipos em nenhuma das duas capas, pois não há, naquilo que estou considerando como estereótipo nos dois exemplos apresentados, nenhum desses traços negativos. Contudo, neste trabalho, assim como ocorreu no início do século XX, quando Walter Lippmann escreveu os primeiros trabalhos acerca da noção de estereótipo, considero que tal noção não remete necessariamente a algo negativo, mas apenas mostra que a estereotipia é, conforme defendia Lippmann, um fenômeno intrínseco à vida em sociedade e, portanto, aos discursos que circulam nessa mesma sociedade.

Referências
AMOSSY, R. ; PIERROT, A. H. Estereotipos y clichés. Traducción y adaptación: GÁNDARA, L. 1ª ed. 4ª. reimp. Buenos Aires: Eudeba, 2005 [Título original: 1997]. (Enciclopedia Semiológica).

HENRY, P. A ferramenta imperfeita – língua, sujeito e discurso. Tradução: CASTRO, M.F.P. de. Campinas: Editora da Unicamp, 1990 [Título original: 1977].

LIPPMANN, W. Opinião pública. Tradução e prefácio: WAINBERG, J.A. Petrópolis: Vozes, 2008 [Título original: 1922]. (Coleção Clássicos da Comunicação Social). MAINGUENEAU, D. Análise de textos de comunicação. Tradução: SOUZA-E-SILVA, C.P. de; ROCHA, D. São Paulo: Cortez, 2004 [Título original: 1998].

MAINGUENEAU, D. Ethos, cenografia e incorporação. In: Amossy, R. (org.). Imagens de si no discurso. Tradução: CRUZ, D. F. da; KOMESU, F.; POSSENTI, S. São Paulo: Contexto, 2005 [Título original: 1999].

PÊCHEUX, M. Semântica e discurso: uma crítica à afirmação do óbvio. Tradução: Eni P. Orlandi (et. al.). 3ª ed. Campinas: Editora da Unicamp, 1997 [Título original: 1975].

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06/02/2011, 14:20

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