domingo, 17 de outubro de 2010

Ensino de língua Inglesa - Capítulo de Antonieta Celani

In: Lopes, F. E K. Rajagopalan. 2004.A Lingüística que nos Faz Falhar: Investigação Crítica. São Paulo. Parábola Editorial. 119-124

CHAUVINISMO LINGÜÍSTICO:

UMA NOVA MELODIA PARA UM VELHO TEMA?*

M.A.A.Celani – PUC-SP

... as relações humanas se fazem em vários e diferentes idiomas, o que faz com que muitos não sejam compreendidos por muitos, ...

... quem for tão pobre de espírito a ponto de pensar que sua terra natal é a mais maravilhosa debaixo do sol, também preferirá sua própria língua materna a todas as outras ...

Mas, nós, para quem a pátria é o mundo, como o mar é para os

peixes ... descobrimos que há muitos lugares e cidades,

que acreditamos mais nobres e mais encantadores do que a Toscana e Florença,

da qual provenho e da qual sou cidadão;

e que muitas nações e povos usam uma língua mais agradável

e mais útil do que os latinos.

Dante Alighieri, in De Vulgari Eloquentia, Livro I, Seção 6[1].

Inspirada por epígrafe usada por Fishman (1972:1), decidi usar a citação de Dante, de trabalho que discute a “questão da língua”, por volta de 1304, para servir de mote para minha discussão de um dos aspectos tratados no artigo de Rajagopalan (este volume): como as línguas estrangeiras são percebidas pelas pessoas, particularmente pelos que têm algum tipo de poder.

É difícil compreender como neste início de século, voltem à baila questões já amplamente discutidas. Muitos séculos depois de Dante, Hornby (1946:4) afirma que “nenhuma nação pode se permitir viver uma vida insular nos dias de hoje. Se as nações tentarem viver apenas do próprio cabedal de pensamento e sentimento, muito em breve todas estarão sofrendo de estagnação e decadência”.

Dante atribui à pobreza de espírito posições jacobino-xenófobas em relação à pátria e à língua, contrapondo-as à sua própria visão de homem do mundo, que, como os peixes, quer sentir-se à vontade na amplidão do mar. É justamente esta metáfora que desejo utilizar mais adiante para fazer algumas considerações a respeito dos danos que o chauvinismo lingüístico pode causar se estiver direcionando políticas de ensino.

Em publicações anteriores (Celani, 1995 1998, 2000a, 2000b) tratei do descaso com que são vistas as línguas estrangeiras pelas autoridades na formulação de políticas educacionais e indagava se esse descaso seria fruto apenas de possível ignorância ou de uma posição ideológica perversa, que negava justamente aos mais necessitados o acesso a outras línguas. Minha tendência, na época, era interpretar essa triste realidade como resultante de uma posição ideológica elitista, que reservava o acesso às línguas estrangeiras aos mais favorecidos economicamente, já que não dava condições de ensino-aprendizagem na escola. Mas, nos dias de hoje, em que os responsáveis pela educação nacional ideologicamente se dizem preocupados em abrir oportunidades e em criar possibilidades justas, especialmente para os menos privilegiados, isto é, querem a “educação para todos”, e, supõe-se, com qualidade, só posso atribuir à falta de conhecimento a posição nacionalista estreita, jacobina, xenofóbica mesmo, a que o texto de Rajagopalan se refere.

Há de se convir que para os que se atêm apenas ao visível, sem ter tido a possibilidade de analisar os fatos com o equilíbrio proporcionado pelo conhecimento especializado e pela própria história de vida, o panorama atual parece assustador. Estamos engolfados em uma verdadeira avalanche de termos e expressões alienígenas, um verdadeiro ataque de proveniência anglo-saxônica, para sermos mais explícitos. Essa impressionante e “assustadora invasão” de estrangeirismos, particularmente do inglês, pode explicar a atitude ingênua de alguém obviamente não versado em questões de educação e, necessariamente, de linguagem. No entanto, esse impulso nacionalista, pode levar a posições extremadas que chegam às raias do ridículo. E mais, essa ingenuidade pode significar atraso irrecuperável para a educação do país. Sim; a posição de chauvinismo lingüístico que Rajagopalan discute tem necessariamente repercussões na política educacional, no que se refere ao ensino de línguas estrangeiras. Por que ensinar línguas que são vistas como ameaças à unidade nacional e que, além do mais, nínguém poderá usar livremente sem se expor a punições?

Deixo aos meus colegas lingüistas a discussão, aliás já feita em várias instâncias e circunstâncias[2], dos aspectos que poderíamos entender como decorrentes de teorias de linguagem, do cabedal de conhecimento já desenvolvido pela antropologia, pela sociolingüística, pelos estudos em variação e em políticas lingüísticas e pelos estudos culturais em relação ao multilingüismo e ao papel dos empréstimos lingüísticos. Abordo particularmente a questão do ponto de vista da professora de língua estrangeira que firmemente acredita no papel desse ensino como componente indispensável na formação integral dos indivíduos, mais do que nunca na nova ordem mundial.E, particularmente, do ponto de vista da professora de inglês, o que me obrigará necessariamente a levar em conta a posição hegemônica dessa língua neste momento da história. Termino com considerações a respeito dos direitos universais humanos, aí incluídos os direitos lingüísticos.

Minha posição a respeito do papel das línguas estrangeiras na educação está expressa nos Parâmetros Curriculares Nacionais – Língua Estrangeira (1998:37). Não é um papel acessório, mas “contribui para o processo educacional como um todo, indo muito além da aquisição de um conjunto de habilidades lingüísticas. Leva a uma nova percepção da natureza da linguagem, aumenta a compreensão de como a linguagem funciona e desenvolve maior consciência do funcionamento da própria língua materna.” A aprendizagem de uma outra língua faz parte de uma educação intercultural visando à promoção do entendimento entre as pessoas.

Embora haja entre nossos governantes opiniões contrárias, não considero tampouco as línguas estrangeiras mero acessório para o desenvolvimento nacional. Só pode fazer escolhas entre possibilidades que se apresentam, quem tem olhos esclarecidos para ver. E aí está a contribuição das línguas estrangeiras na educação para o desenvolvimento individual e nacional. Essa contribuição pode também ser entendida como força libertadora (Freire, 1970), tanto em termos culturais quanto profissionais. É a visão de Dante, para quem “a pátria é o mundo, assim como o mar é para os peixes”. É enxergar além. Além de seu redor, sem menosprezá-lo; além de seus valores, sem perdê-los; além de seu país, sem abandonar sua cultura. É entender a diferença e a diversidade, por meio de uma experiência de imersão na sabedoria distintiva de uma outra cultura como espaço para crescimento. É engajar-se com a diferença. E isso é vital no mundo de hoje. É a via de acesso a outros sistemas de valores e modos de interpretar o mundo, o que reduz a xenofobia, tão prejudicial em um momento histórico em que se necessitam posturas que levem à compreensão e não à rejeição pura e simples.

Mas como explicar a importância de se aprenderem outras línguas além da materna, se elas são vistas pelos que fazem as leis no país como algo perverso, a ser combatido a todo custo?

Em relação à problemática particular de a língua estrangeira ensinada-aprendida ser o inglês, é necessário ter clareza a respeito das questões de poder e de desigualdade. E isso não se faz eliminando os contactos com a língua, ou até mesmo impedindo seu ensino. É necessário, isso sim, ter claro nos programas não só de formação inicial de professores, mas também nos de educação contínua, a importância de neles ocuparem posição focal questões relativas ao domínio não só lingüístico do inglês, mas também ao domínio econômico da maior potência que usa essa língua. Moita Lopes (2003) discute com particular propriedade como isso deve ser feito com plena consciência crítica das consequências para a educação dos jovens. Não se quer, com o aprendizado da língua, a adoção e a reprodução de valores vinculados a interesses do poder político e econômico de uma potencia estrangeira. A questão não está no uso das palavras delivery ou sale, invadindo nossos (desculpem) shopping-centers, mas sim no que elas representam. É isso que deve ser objeto de discussão. A questão a ser debatida não é nem lingüística nem pedagógica.Tem um valor ideológico-crítico e uma dimensão política e ética; é um fenômeno social que transcende tentativas de purificação ou de estandardização da língua. O que se faz necessário é um letramento político, em inglês como língua estrangeira, a partir de uma perspectiva crítica.

Por um impulso nacionalista totalmente equivocado, alguns, exercendo o poder, querem banir o uso de línguas estrangeiras no país. Talvez os tranqüilize saber que as “novas paisagens lingüísticas” que se delineiam para a quinta década deste século não mais têm o inglês como língua dominante, em número de falantes. Esta será o mandarim, apontam as previsões (Graddol, 2004). Na verdade, os monolíngües falantes de inglês, mesmo em sua própria terra, terão dificuldade de participação na sociedade multilingüe que surgirá, se não dominarem outra língua. Será necessário o domínio do espanhol para os próprios americanos poderem participar da sociedade americana atual. Para Graddol (2000), é uma ironia a língua da cultura monolíngüe levar ao restabelecimento do multilingüismo. Será necessário criar novas gerações de bilíngües e multilíngües.

Isto já era pressentido por Harford (1968) quando dizia que “nós (os ingleses) teremos de aceitar o fato de que ser monolíngüe em inglês é ser semi-educado”. Acrescento eu: ser monolíngue em qualquer língua é ser semi-educado. Em alguns contextos, e neles incluo o nosso, pode ser também fator de atraso e de impedimento de participação plena no que acontece no mundo, na sociedade. É ser fadado a viver em um aquário e não no mar. O aquário poderá ser o mais belo, o mais bem equipado, mas será sempre um aquário. Nunca terá a amplitude e a riqueza multifária do mar. Não estarão os monolíngües em inglês vivendo em um aquário, ignorantes da beleza do resto do mundo? Queremos imitá-los também nisso?

Antes de terminar estas considerações, gostaria de focalizar um último aspecto, referente aos direitos lingüísticos.

O apelo pioneiro por uma declaração universal dos direitos lingüísticos dos indivíduos, partiu do Brasil, feito por Francisco Gomes de Matos (1984). Encontrou eco em David Crystal, que discute a questão no prefácio de sua Cambridge Encyclopedia of Language (1987:vii):

“Todas as pessoas têm o direito de usar sua língua materna, de aprender uma segunda língua, de receber tratamento especial quando sofrem de um distúrbio de comunicação ... mas em muitas partes do mundo esses direitos estão ausentes ou não são devidamente garantidos.” (ênfase minha)

Os esforços de organizações como a Fédération International des Professeurs des Langues Vivantes (FIPLV) e da Anthropology and Language Science Educational Development (ALSED) levaram ao documento Artigos para uma Carta de Direitos Humanos Lingüísticos Básicos,[3] dos quais o de número 10 reza o seguinte:

“Toda pessoa tem o direito de que lhe ensinem pelo menos uma língua além da sua materna a fim de que possa ampliar seus horizontes sociais, culturais, educacionais e intelectuais e promover compreensão genuina entre as nações” (FIPLV World News, 24, 1992, 1-2).

Ações em vários âmbitos resultaram na Conferência Mundial dos Direitos Lingüísticos, em Barcelona, em 1996, na qual foi aprovada a Declaração Universal dos Direitos Lingüísticos[4], que, no entanto, não conseguiu ratificação da UNESCO. Mas esta organização mesma continuou a se ocupar da questão das línguas e dos direitos lingüísticos, em eventos e publicações. Merece destaque a publicação do documento de opinião Educação em um Mundo Multilíngüe (2003)[5]. Entre outras questões concernentes à educação, o documento inclui a dos direitos lingüísticos, mencionando particularmente o direito do acesso às línguas internacionais (UNESCO, 2003:16-17).

Como bem lembra Cunningham (2003),

“... [neste momento particular da história] é oportuno que encaremos honestamente os benefícios dos direitos lingüísticos, da compreensão intercultural, da aceitação respeitosa da diversidade cultural e lingüística e o papel que as línguas podem efetivamente assumir na promoção da paz.”

Está aí mais uma importante razão para que o ensino das línguas estrangeiras, mais

de uma, sim, volte a ter o lugar que merece nos currículos de nossas escolas, como já teve no passado (Celani, 2000).

Para finalizar, recorro às palavras de Anne Soukhanov, editora do Encarta World English Dictionary, em entrevista a Barbara Wallraff (2000). Aponta a necessidade de mais de uma língua para se ter participação plena no mundo, particularmente para os próprios americanos poderem participar da sociedade americana atual. Ao ser interrogada a respeito do efeito da globalização no inglês e à possível contaminação do inglês por outras línguas, vê o inevitável influxo de palavras estrangeiras no inglês como um processo enriquecedor, pois refletirá interações com outras culturas.Termina dizendo:

“A naturalização de palavras estrangeiras no inglês americano não derrubará a Republica. Só pode beneficiar os americanos”.

Concluo, também, afirmando que a naturalização de palavras estrangeiras (somente inglesas?) no português do Brasil não derrubará a República. Só poderá beneficiar os brasileiros. Mas, para que isso aconteça é necessário que se propicie o desenvolvimento de uma consciência crítica nos educadores em geral e nos professores de língua inglesa em particular. Isso terá reflexos seguros na educação de cidadãos conscientes, de mente aberta, atuantes no fascinante mundo que os espera.

* Agradeço a Beatriz Berrini e Leila Barbara pela leitura da versão preliminar e pelas sugestões.

REFERÊNCIAS

BAGNO, M. O deputado e a língua. Boletim da ALAB, nº 4:55-61. 2000.

BRASIL. SECRETARIA DE EDUCAÇÃO FUNDAMENTAL. Parâmetros Curriculares Nacionais: terceiro e quarto ciclos do ensino fundamental: língua estrangeira. MEC/SEF. 1998

CELANI, M.A.A. As línguas estrangeiras e a ideologia subjacente à organização dos currículos da escola pública. Claritas. Nº 1:9-19.1995

CELANI, M.A.A. a integração político-econômica do final do milênio e o ensino de línguas estrangeiras no 1º e 2º graus. In: ABRALIN. Boletim da Associação Brasileira de Lingüística. Vol.18. p.21-36. 1998

CELANI, M.A.A. A relevância da Lingüística Aplicada na Formulação de uma Política Educacional Brasileira. In: M.B.M.Fortkamp e L.M.B.Tomitch (orgs.) Aspectos da Lingüística Aplicada. Estudos em Homenagem ao Professor Hilário Inácio Bohn. Editora Insular. p.17-32. 2000a

CELANI, M.A.A. O Ensino da Língua Estrangeira no Império: o que mudou? In: B. Brait e N. Bastos (Orgs.) Imagens do Brasil: 500 anos. EDUC. p.219-248. 2000b.

CRYSTAL, D. The Cambridge Encyclopedia of Language. Cambridge University Press. p.vii. 1987

CUNNINGHAM, D. The Fédération International des Professeurs des Langues Vivantes (FIPLV) and Language Rights. Mimeo. s.d.

FARACO, C.A. guerras em torno da língua. Folha de São Paulo. Caderno Mais. 2001. p.3031

FIORIN, J.L. Considerações em torno do projeto de lei de defesa, proteção, promoção e uso do idioma apresentado à câmara dos deputados pelo deputado Aldo Rebello. In: Boletim da ALAB, nº 4. p.62-75

FISHMAN, J.A. Language and Nationalism. Two integrative essays. Newbury House Publishers. 1972

FREIRE, P. A Pedagogia do Oprimido. Paz e Terra. 1970

GOMES DE MATOS, F. Plea for a Universal Declaration of Linguistic Rights. In: FIPLV World News. 33. 1984. p. ??

GRADOLL. D. The future of language. Science. 27 fevereiro 2004. 303:1329-1331. Encontrado em www.sciencemag.org em 6/5/ 2004

GRADOLL. D. Being Multilingual. Entrevista concedida por e-mail a Barbara Wallraff. 2000. Encontrada em www.theatlantic.com/issues/2000/11/wallraff-graddol/htm em 12/5/2004

HARFORD, J. Entrevista em British Council Bulletin XX. Outubro 1968

HORNBY, A.S. Foreign Language Studies: their Place in the National Life. English Language Teaching 1/1:3-6. 1946

MOITA LOPES, L.P. A nova ordem mundial, os Parâmetros Curriculares Nacionais e o ensino de inglês no Brasil: a base intelectual para uma ação política. In: BARBARA, L. e RAMOS, R.C.G. (Orgs.). Reflexão e Ações no Ensino-Aprendizagem de Línguas. Mercado de Letras. 2004. p.29-57

SCHMITZ, J.R. Em defesa da língua portuguesa: defendê-la de quem e de que? Boletim da ALAB. Nº4. 2000.p.43-37

SOUKHANOV, A. A Richly Capable Mother Tongue. Entrevista concedida por e-mail a Barbara Wallraff. 2000. Encontrada em www.theatlantic.com/issues/2000/11/wallraff-soukhanov.htm em 12/5/2004

UNESCO. Education in a Mltilingual World. UNESCO. 2003



[1] Esta tradução, como todas as demais, é de minha autoria. Texto encontrado em www.greatdante.net/texts.htm em 26/4/2004

[2] Faraco (2001), Fiorin (2000), Bagno (2000), Schmitz (2000), além da presença atuante dos representantes da Associação Brasileira de Lingüística (ABRALIN) e da Associação de Lingüística Aplicada do Brasil (ALAB), Pedro Garcez, Gilvan Muller e Rosilma Roldan na Audiência Pública na Comissão de Educação do Senado Federal em 4/12/2002 e na TV Senado, Cidadania Discute Língua Portuguesa, em 13/12/2002.

[3] Articles for a Universal Charter of Basic Human Linguistic Rights

[4] Universal Declaration of Linguistic Rights (UDLR)

[5] Education in a Multilingual World, publicado nas línguas oficiais da UNESCO, após consulta aos vários documentos existentes e discussão com 20 especialistas em Paris, em 2002, sob coordenação de Linda King.

Capturado a partir de:

http://revistaescola.abril.com.br/lingua-estrangeira/fundamentos/nao-ha-receita-ensino-lingua-estrangeira-450870.shtml
17/10/2010, 15:50

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